De Maceió ao interior, mulheres ocupam o centro da cena reggae com arte, resistência e ancestralidade
Texto de Esmeralda Donato com supervisão de Bertrand Morais
O som grave do baixo e a batida cadenciada do reggae ecoam por ruas, praças e eventos culturais em Alagoas. Entretanto, cada vez mais, é a voz feminina que conduz esse ritmo de resistência e celebração. Em um universo historicamente masculinizado, mulheres têm conquistado espaço dentro e fora dos palcos — como cantoras, DJs, produtoras, curadoras e articuladoras de eventos do gênero musical bastante popular em Maceió, como apresentou a pesquisa Cultura nas Capitais, contextualizada aqui pela Revista Alagoana.
Foi a partir da provocação da produtora cultural Keka Rabelo, que surgiu a ideia dessa reportagem: Registrar e amplificar a presença de mulheres na cadeia produtiva do reggae em Alagoas, do palco aos bastidores, do litoral ao sertão.
No estado, a presença feminina no reggae é marcada tanto por histórias pioneiras quanto por ações coletivas que visam transformar a cena reggae local. Mais do que ocupar microfones e radiolas, elas constroem pontes, fortalecem a cultura local e fazem do reggae um instrumento de identidade, denúncia e ancestralidade.
Lugar de mulher é onde ela quiser — inclusive no reggae
Foi com essa certeza que surgiu a banda Mandhalas, a primeira do gênero formada por mulheres em Alagoas. Criada por Tati Carvalho, Larissa Carvalho e ao lado da baixista Michelly Andrey, a proposta era simples e revolucionária: sair da posição de backvocal e ocupar o centro do palco, com composições próprias e mensagens femininas.
“A motivação foi colocar a nossa voz, trazer nossas mensagens, nossas próprias músicas”, lembra Tati. O projeto surgiu da ausência de espaço para mulheres criarem e liderarem dentro do reggae — algo que ainda hoje persiste. “A gente não estava tendo oportunidade de mostrar nossas composições, então nos juntamos para fazer isso acontecer”, afirma.
As dificuldades, no entanto, foram muitas — da formação da banda à permanência nos palcos. “Tivemos dificuldades de formar uma banda completamente por mulheres. A Michele precisou sair por conta da maternidade. A mulher não tem esse apoio na sociedade”, lamenta. Mesmo assim, o grupo gravou um CD em apenas três meses de atuação. O fim da banda se deu quando Tati deixou Maceió, mas o impacto da Mandhalas ainda ressoa como uma semente para outras iniciativas.
Anos depois, a relação entre maternidade e permanência na cena reggae ainda é um ponto de reflexão, a Revista Alagoana, trouxe esse assunto em uma entrevista com a cantora Myrra, que compartilhou os desafios da maternidade junto a carreira artística no reggae.
Outro nome que marca a presença feminina no reggae alagoano é o de Negra Lia, artista que dá continuidade a um legado familiar. Filha do DJ Sergynho Rasta, Lia cresceu rodeada de vinis, radiolas e programas de rádio comunitária — e foi nesses espaços que formou sua musicalidade.
“Eu sempre gostei do reggae, cresci ouvindo através do meu pai. Ele sempre será o Sergynho Rasta, e eu serei a filha que dá continuidade ao reggae”, afirma.
A carreira dela começou em 2003, em um projeto de reggae da periferia. Após alguns anos longe dos palcos, voltou incentivada pelo pai, agora com carreira solo. “Ele me fez uma proposta e aceitei. Hoje sigo com o projeto Reggae Love, como Negra Lia”.
Apesar das conexões familiares, Lia destaca que trilhou seu próprio caminho. “Os espaços que meu pai ocupa, às vezes, se cruzam com os meus, mas hoje têm sido até melhores. Falo com pessoas diferentes, me conecto com outras organizações e festivais. A gente tem rodado várias cidades de Alagoas e até fora do estado”, garante.
Ela também exalta a cena reggae local e sugere nomes potentes para quem deseja conhecer mais: “Em Alagoas tem muita gente boa, como Osvaldo Silva, Alex Melo, Vibrações, Nação Palmares. E também bandas de fora como Reação, de Aracaju, e Adão Negro, de Salvador.”
Festivais, coletivos e o futuro do reggae com elas no comando
A presença feminina no reggae alagoano não se limita à performance musical. Elas estão nos bastidores, produzindo, conectando e movimentando a cena. Festivais como o Encontro Cultura Reggae Alagoas e o Festival da Massa são exemplos de ações que fortalecem essas presenças, muitas vezes invisibilizadas.
Keka Rabelo é um dos nomes à frente desse movimento. Com mais de duas décadas de atuação, ela conta que por muito tempo foi a única produtora de reggae do estado. “Apareciam algumas mulheres, geralmente assessorando músicos ou bandas, mas, quando eu perguntava, elas nem eram citadas na ficha técnica”, relembra. “No interior, essa ausência fica ainda mais evidente — conheci pouquíssimas produtoras de reggae. A única que lembro é Mila, de Arapiraca, que trabalhou com reggae e rock por um tempo.”
Esse cenário aos poucos, começa a mudar. “Hoje temos grupos de WhatsApp, coletivos de DJs mulheres, eventos como o Musas do Reggae e outras iniciativas. Algumas mulheres também produzem eventos em seus próprios espaços, de outros gêneros musicais, mas que incluem o reggae. Ainda são poucas, mas estamos vendo uma mudança.”
Keka começou sua trajetória como produtora no movimento estudantil, em paralelo com o reggae. “Posso dizer que me formei enquanto produtora tanto no movimento estudantil quanto no movimento reggae”, conta.
Reggae é luta, voz e cura — com elas no centro
O protagonismo feminino no reggae alagoano não é mais uma promessa: é realidade. De maneira orgânica, mulheres estão redesenhando as estruturas da cena, enfrentando o machismo estrutural e provando que suas vozes não apenas cabem nesse ritmo, elas são o ritmo.
Para Keka, o reggae é uma cultura preta, periférica e ancestral que tem papel fundamental na luta antirracista. “O reggae carrega um discurso de igualdade, de preservação do meio ambiente, de respeito ao próximo — é um grito contra o genocídio do povo preto e periférico.”
Ela reforça também que o reggae é uma cadeia produtiva ampla, e envolve técnicos, artistas, designers e produtores, atravessando múltiplas linguagens. “É ouvido nos quilombos, nas aldeias indígenas. Ele é, sim, um dos segmentos musicais mais consumidos por nossos povos”.
Na sua visão, a chave para fortalecer a presença das mulheres no reggae está na formação política e na organização coletiva. “As mulheres precisam entender seus direitos, ocupar firmemente os espaços, se organizar em movimentos e coletivos, buscar apoio e formação técnica — especialmente dentro dos contextos periféricos”.
E completa: “Mais do que autoconhecimento, o que precisamos é de pertencimento. A formação política deve vir antes. Quando falamos apenas em ‘autoconhecimento’, corremos o risco de cair em soluções superficiais — como buscar um coach ou ler um livro — sem enfrentar o cerne da questão, que é estrutural e coletiva.”
Entre heranças familiares, ativismos potentes e pioneirismo artístico, as mulheres que fazem reggae em Alagoas não pedem espaço: criam o próprio palco. E, com isso, deixam um legado que pulsa em cada batida grave, cada letra autoral e cada corpo que dança — livre, negro e feminino.