Colaboração de Vanderlei Tenório
Carlos Pronzato é escritor, cineasta, contista, poeta, documentarista, teatrólogo e ativista social, formado em direção teatral pela Universidade Federal da Bahia (UFBA, 1993) com pós-graduação/especialização em Teoria do teatro pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, 2002). Segundo ele, o Teatro e a Literatura compartilham o “amor livre” com o Cinema e mais especificamente pelo documentário.
Em 22 anos de carreira, Pronzato dirigiu mais de 80 documentários sociopolíticos – sua filmografia é tão prolífica que até fica difícil listar com precisão o número de produções executadas por ele. A paixão pelo audiovisual está em seu dna, seu pai Victor Pronzato – que como artista, adotou o nome profissional de Victor Proncet era roteirista, ator, escritor e compositor. Um dos trabalhos mais conhecidos de Victor é o longa-metragem argentino “Os Traidores” (1973).
Denunciar tragédias sociais, dilemas, omissões, negligências, contrastes e dramas da América Latina, esse é o norte cinematográfico do documentarista argentino Carlos Pronzato, radicado no Brasil. Pronzato é um documentarista perspicaz na construção de narrativas, no detalhamento dos registros captados em campo e na elaboração do enredo, esses detalhes são nítidos em seus trabalhos – ele é sublime na abordagem de um tema esquecido ou pouco divulgado.
No Brasil, Pronzato dirigiu uma série de documentários denunciando vários acontecimentos sociais e políticos em grande destaque na imprensa nacional. Entre os temas sociais podemos citar: a tragédia de Brumadinho, o apagão no Amapá, a destruição da Braskem em Maceió e a construção de uma estação elevatória de esgoto (EEE) na Área de Proteção Ambiental das Lagoas e Dunas do Abaeté.
Já no viés político, em breve síntese, podemos citar: a luta contra o aumento de 20 centavos da tarifa dos ônibus urbanos da cidade de São Paulo em junho de 2013, a ditadura civil militar brasileira, as condições de trabalho do magistério municipal de Curitiba, o fenômeno da terceirização, o surgimento do Movimento dos Sem Teto de Salvador (MSTS), detalhes da operação Condor, as discussões e resultados do projeto Escola sem Partido, polêmicas da Guerra de Canudos, entre outros.
Dentre os mais de 80 documentários dirigidos por ele, destacam-se: “Buscando a Allende” (2008), “Madres de Plaza de Mayo – Memória, Verdade e Justiça” (2009), “Carlos Marighella. Quem samba fica, Quem não samba vai embora” (2011), “1917, A greve geral” (2017), “1968 – A greve geral de contagem” (2018), “Lama, o crime vale no Brasil, a tragédia de Brumadinho” (2019), “A lagoa escura – em defesa do abaeté” (2020), “Trem do subúrbio, trilhos de resistência” (2021), “Dois Paulos na Pauliceia” (2021), “A Braskem passou por aqui: a catástrofe de Maceió” (2021), “Padre Júlio Lancellotti, fé e rebeldia” (2021) e “Amapá, quem vai a pagar a conta?” (2021).
Carlos Pronzato destaca que ao fazer esses documentários a prioridade é preservar memórias, garantir o acesso e o registro a essas histórias, dar voz a injustiçados e a movimentos sociais. Para ele, o objetivo principal é trazer à tona experiências de confronto com o capital, orgânicas ou não, com maior ou menor relevo popular, mas com contundente incidência histórica nos movimentos reivindicatórios e revolucionários posteriores.
Por seus documentários sociopolíticos, recebeu alguns prêmios e condecorações como: o “Conselho Latino-Americano de Ciências sociais” (2008), o “Roberto Rossellini” (2008), na Itália, “Prêmio de Melhor Filme – Juri Popular”, no II Bahia Afro Festival (2008), “Prêmio Especial do Júri”, na Jornada Internacional de Cinema da Bahia (2009), “Prêmio Destaque Cineasta do Ano” – Honra ao Mérito da Academia de Cultura da Bahia (ACB) (2010), “Liberdade de Imprensa”, pelo Jornal Tribuna da Imprensa Sindical, em 2017, no Rio de Janeiro e, mais recentemente, o “Prêmio Dois Paulos” – prêmio em homenagem ao centenário de Paulo Freire e dom Paulo Evaristo Arns. A obra completa de Carlos Pronzato pode ser acessada em seu site.
Nosso colaborador Vanderlei Tenório bateu um papo com o documentaria argentino. Na entrevista exclusiva, Pronzato e Tenório debateram temas como: o cinema em geral, a política brasileira, a política da produção audiovisual e o audiovisual como política, América latina, efeitos do governo Bolsonaro no audiovisual, a atual ANCINE, o futuro da produção nacional, a produção independente, entre outros.
Confira a entrevista:
– Como se deu sua opção para trabalhar com o cinema?
Carlos – Meu pai, Victor Pronzato, trabalhava na Indústria cinematográfica argentina como roteirista, compositor de músicas dos filmes e ator, além de ser dramaturgo e também roteirista de TV. De alguma maneira segui seus passos, não na ficção, mas no documentário. E teve um filme, proibido na Argentina durante dez anos, “Los Traidores”, do diretor Raymundo Gleizer, desaparecido durante a ditadura em 1976, que me marcou profundamente. O filme só entrou em cartaz em 1983, no reinicio da democracia, mas eu já estava morando no México, onde assisti numa sessão privada organizada pela militância para mim. O diretor era um famoso documentarista político na Argentina e “Los Traidores” foi seu único filme de ficção realizado com o Grupo Cine de la Base, no qual o meu pai foi o roteirista e o ator principal (está no Youtube). O filme fala sobre a traição de um líder sindical à sua classe. Um dos principais filmes de cinema político da América Latina. Também estudei teatro na Argentina, antes de ingressar no curso de Direção Teatral na UFBA, e a direção teatral foi tomando o curso para a direção no cinema, especificamente no cinema documentário. Além disso, desde os meus quinze anos assisti ininterruptamente filmes em muitas sessões cinéfilas organizadas em Buenos Aires.
– Comente a relação dos seus filmes com o público.
Carlos – A relação é muito dinâmica, principalmente agora com as novas tecnologias de comunicação, pelo menos de forma virtual, que não é o ideal, mas expande muito mais. Receber saudações e mensagens de apoio do público constantemente motiva. Também recebo muitas sugestões, propostas gerais de projetos a serem realizados, inúmeros temas solicitados dos quais às vezes surge um projeto concreto. Antes, com as exibições públicas e a circulação dos dvd´s o público era mais restrito aos temas, mais politizado, mas era uma experiência viva, catártica e para um filme político isso é algo essencial, porque até podemos sair do cinema e ir para a briga! Hoje com o streaming individual o alcance pode ser bem maior e atinge um público mais diversificado, ainda que maiormente dentro da temática social, mas a experiência religiosa (de re ligare, ligar as pessoas) de confraternizar durante a exibição e principalmente refletir e discutir o filme e o tema no debate posterior se perdeu.
Os filhos, ou seja, os filmes, ganham mundo e perfazem um caminho próprio já em mãos dos que utilizam esses filmes, em cineclubes, atividades políticas ou culturais, Tvs educativas ou comunitárias e até TVs do Estado, diversos canais do Youtube, que entram em contato solicitando autorização ou não, etc. Ou seja, foge a nós, uma vez o filme quebrar a casca, os seus destinos finais, o que é ótimo porque perdemos a dimensão da quantidade de gente que ele pode atingir, muito além das visualizações e curtidas do mundo contemporâneo digital.
– Comente conosco sobre suas experiências na 7ª arte.
Carlos – Minha inserção se deu através de primeiras experiências de trabalho no chamado cinemão da Argentina, como segundo ajudante de direção, sindicalizado no SICA (Sindicato da Indústria Cinematográfica Argentina), depois fui morar no Mexico com vinte e poucos anos e lá continuei no cinema por um curto período só que já com um viés político, trabalhando com o cinema de artistas e militantes latino-americanos, um cinema de exilados políticos naquele país. A partir daí, praticamente em toda a década dos anos 80, tive um grande hiato de viagens e moradias por diversos países e ocupações diversas sem destino pela América Latina (que considero a minha grande Universidade, mestrado e doutorado. Risos) até me instalar no Brasil definitivamente em 1989 e aqui retomar o Teatro (fiz o curso de direção teatral na UFBA com pós na UFRGS), a Literatura e o Cinema.
– A maioria dos cineastas tem uma linguagem de criação muito própria.
Carlos – Acredito que sim, cada um tem uma voz e uma gestualidade própria, o que diferencia cada ser humano de outro na vida também se dá no cinema e isso é verificável em qualquer plataforma artística também. Há rituais próprios de cada criador na hora da gestação das obras, na produção e no produto final. Um bom exercício cinéfilo é perseguir marcas reconhecíveis de direção em obras de diferentes diretores, planos, ritmos, sequências, sons, etc. Sempre haverá os que criam essas linguagens e os que, apesar de também terem marcas próprias, reproduzem muito, consciente ou inconscientemente, as formas e conteúdos daqueles que admiram.
– Comente conosco sobre sua forma de criação e como isso influi na sua essência cinematográfica.
Carlos – A forma de criação pode partir de qualquer ponto, de uma notícia do jornal, de uma anotação num livro, de uma ligação, de uma observação na rua, de um fato da própria memória, de um acontecimento político, etc. A partir daí é verificar o que se tem feito sobre esse assunto escolhido em todas as vertentes artísticas possíveis, começar a pesquisa e planificar os tempos de pré produção, de produção e gravação e posteriormente da análise do material gravado até chegar na ilha de edição. Todos esses processos para mim são essenciais porque são relativos aos recursos básicos com os quais são realizados estes documentários de intervenção política. Não há tempo a perder e, é um atrás do outro, há exigências temporais e de urgência em apresentar à sociedade estes documentários para intervir na reflexão popular dos fatos abordados.
Na verdade, a minha pauta criativa, como também escrevo e público poesia, teatro e contos, se compõe de diversas possibilidades de expressão e as vezes interligadas, mas sempre o cinema, o tema abordado, é o pontapé inicial, no meu caso, pelo menos, para depois atingir os outros campos das artes. Aconteceu assim com temas com Che Guevara, Marighella, os sem-terra, a tragédia de Brumadinho, a greve geral de 1917, a catástrofe da Braskem, etc. Todos documentários geraram livros de poesias e até de contos posteriormente. É como se a insuficiência do formato documentário, o seu tempo limite precisasse de oferecer continuidade por outros meios.
– Quais são suas principais referências no cinema nacional e internacional?
Carlos – As referências em termos gerais são as dos principais cineastas documentaristas mundiais (Jorins Ivens, Chris Marquer, Jorge Sanjinés, etc.) e também muitos e muitos da ficção como Pasolini, Antonioni, Fellini, Visconti, Des Sica (os italianos em linhas gerais), Tarkovsky, Bergman e a lista é imensa, de todos resgato interesse e também da maioria dos filmes do cinema noir norte-americano, que assisto muito, verdadeiras aulas de roteiro, enquadramento e direção, além do glamour da época, que curto muito. Do cinema nacional, tenho predileção pelo cinema histórico político de Silvio Tendler, quem em 2006 me abriu as portas do Rio me outorgando uma grande visibilidade nacional ao meu incluir no elenco do documentário “Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá”, também utilizando cenas de diversos filmes meus realizados na América latina. Atualmente tenho assistido séries espetaculares, talvez uma moda, como já houve séries no passado no cinema.
– Quais filmes marcaram a sua vida?
Carlos – O cinema italiano do período de pós-guerra, o neorrealismo, foi fundamental para compreender a dimensão do instrumento cinema no cotidiano político mundial assim como outras cinematografias, principalmente as latino-americanas, incluindo aí o cinema novo brasileiro. Na ficção, “Amarcord”, de Fellini é um dos meus filmes mais marcantes e no documentário político, “A Batalha de Argel”, de Pontecorvo, “Cinema Paradiso”, de Tornatore também é um hino ao cinema mundial, à experiência visual, à fruição do cinema como espetáculo único e envolvente.
– Na sua opinião, qual é o atual horizonte para o audiovisual em nosso país?
Carlos – Em termos de produção, extremamente difuso, um panorama tenebroso que se arrasta do período Collor com um parêntese de alguns anos muito importantes após ele. Atualmente, devido a desconstrução total da Cultura e, também a destruição da Educação por parte do desgoverno que estamos sofrendo. Mas, há possibilidade de um ressurgimento já que em breve haverá eleições e não se pode afundar mais um país e o seu cinema, a partir do ponto em que está, a única possibilidade de sobrevivência é a volta a um patamar mínimo de sociabilidade e democracia como antes de 2016, momento em que a famigerada ponte para o futuro nos levou a este precipício político e comportamental atual da exibição explícita do neofascismo tupiniquim, cópia aberrante do internacional, norte-americano e europeu.
– Em tempos de streaming, como você vê a continuidade do cinema físico?
Carlos – Vejo como uma experiência humana que não poderá morrer nunca, assim como as igrejas, os templos e os teatros não morreram nunca desde os seus inícios na antiguidade e passando por todas as idades históricas com maior ou menor sucesso, mas sempre em pé. Claro que houve a partir dos anos 80 e 90 a invasão das Igrejas neopentecostais que tomaram conta dos cinemas para as suas celebrações pecuniárias, feridos também pela TV e a indústria do videocassete, mas hoje estão em ampla recuperação, pelo menos os cinemas de arte (mantidos muitos pelas migalhas do exorbitante lucro de grandes empresas e bancos) e os filmes mais comerciais da indústria ianque que se refugiaram nos Shoppings. Hoje, o streaming é uma realidade econômica e estética, mas jamais poderá superar a experiência cinematográfica de uma sala de cinema, tanto pelo tamanho da tela, do som envolvente e a qualidade da imagem, como pelo conjunto celebratório da intervenção humana e física participante, insubstituível até o momento presente.
– O governo de Jair Bolsonaro tem diminuído orçamentos para projetos culturais, e o presidente já ventilou a possibilidade de extinguir a Agência Nacional do Cinema (Ancine). Qual análise você faz do panorama político atual aplicado ao cinema nacional?
Carlos – O atual desgoverno, que assumiu graças exclusivamente a potência arrasadora das fake news e às prisões de opositores políticos, é um desastre humanitário, cultural e ambiental de proporções nunca vistas, nem na ditadura militar, apesar deste desgoverno estar recheio de fardas em serviço e de inúteis generais de pijama vivendo de altíssimos salários junto às suas famílias. Estrangular a cultura é estrangular a identidade, portanto, é assassinar o seu povo e os seus artistas que são os tradutores das emoções e sentimentos dos seus habitantes. Alguém deveria avisar a esse indivíduo e a sua gangue ministerial que a indústria cultural dá um retorno financeiro espetacular, maior do que outras indústrias clássicas apoiadas pelo Executivo atual a serviço das transnacionais. Um governo que de patriota só tem a bandeira sequestrada à outra metade do país que até hoje não decidiu reagir, apenas aguardando o processo eleitoral de 2022, ou seja, primou a parcimônia e o modelo burguês de mudar alguma coisa para que tudo siga igual, como sustentava o Giusseppe Tomassi de Lampedusa.
No meu caso, que trabalho na margem do sistema por opção política em confronto com o Estado, seja de direita ou de esquerda, a extinção da Ancine me atinge como cineasta, como alguém que está junto nas lutas com os colegas, mas minhas fontes de recursos estão em outros lugares, que não os editais, nas entidades de classe, sindicatos, movimentos sociais e indivíduos particulares que sempre apoiaram tanto previamente à realização quanto na aquisição posterior dos dvds, hoje em crescente desuso e portanto uma parte do financiamento para o qual devemos achar um substituto, certamente nas redes sociais.
– Fale um pouco das suas experiências em festivais e mostras de cinema.
Carlos – Participo pouco de festivais e mostras, mas tenho obtido diversos prêmios nesses poucos que conseguimos enviar materiais. Há muita burocracia para preencher e participar assim como dos editais que deveriam ser infinitamente mais simples. Um dos impedimentos, é que como a gente coloca os filmes nas plataformas digitais imediatamente à sua estreia, tem diversos festivais e concursos que impedem a participação nessas condições, o que acho um absurdo para o cinema político especificamente, já que os espectadores têm urgência, num continente como o nosso, desassistido de grandes veículos progressistas na mídia, de se informar também pela arte de um cinema alternativo, além dos jornais e da mídia informativa em geral, nas mãos das grandes corporações do capital empresarial hegemônico, que ditam as regras também da política institucional nacional e internacional.
Há também festivais específicos de um cinema mais antenado com a realidade, claro e, é nesses que participamos mais. Teve um caso mais exemplar recentemente, que foi o documentário “A Braskem passou por aqui, a catástrofe de Maceió”, lançado em agosto, que recolocou em pauta o tema na mídia. É sobre a mineração da sal-gema em Maceió que durante 40 anos de extração provocou o afundamento de cinco bairros da cidade e o êxodo compulsório de 70.000 pessoas e a questão ainda está em aberto para desastres maiores em outros lugares onde essa empresa consegue burlar as leis ambientais. A estreia foi no nosso canal de Youtube e de forma presencial simultaneamente e já ficou postado, nunca retiramos um material depois da estreia, não brincamos de mercado.
Confira aqui ao documentário: “A Braskem passou por aqui, a catástrofe de Maceió”.
– Como é produzir um documentário independente no Brasil?
Carlos – Acho que coloquei alguns elementos sobre isto na pergunta anterior. Em primeiro lugar, entender o lugar que você ocupa na teia de possibilidades de produção, distribuição e exibição do cinema no país. Estando ciente disto, e bem preparado cultural e psicologicamente (a desistência de coletivos de militância política e artística e colegas que trabalham de forma individual perante o mercado, inclusive no da esquerda, é de estarrecer) é meter os pés na lama e trabalhar sem pausa. No meu caso, são diversos projetos em simultâneo porque o que sustenta o trabalho são os apoios do próximo trabalho assim que finalizado o atual, e às vezes até o anterior que ficou inconcluso, ou seja, uma roda viva utilizando elementos da produtividade capitalista para se sustentar no mundo capitalista enfrentando o inimigo ao mesmo tempo…(risos).
– Se os filmes independentes não alcançam bilheterias expressivas, como as produtoras podem financiar seus projetos sem dependerem das leis de incentivo?
Carlos – Dos mais de 80 documentários não fiz nenhum através de leis de incentivo, embora tenha utilizado em vários desses trabalhos equipamentos de Secretarias de Audiovisual do Estado ou prefeituras, como ilhas de edição e até profissionais, funcionários públicos desses órgãos, mas isso é uma mínima porcentagem, a maioria das obras provêm do meu espírito anarco visceral em termos de produção. Como eu não trabalho com produtoras, nem independentes, – e gostaria de achar alguma, ou seja, enviar um projeto alguma vez – o nosso trabalho depende da nossa férrea insistência perante as entidades de classe (e nunca desistimos diante do clássico “não tem dinheiro” que é a primeira resposta sempre que você envia uma proposta) e uma grande parcela de pessoas que integram uma espécie de retaguarda que cresce constantemente e contribui a cada tema e a cada novo trabalho. Portanto, os apoios prévios é que tem que ser expressivos antes, durante e depois de finalizar os trabalhos (digo, “depois” porque muitos dos apoios prometidos chegam depois de terminados os filmes … e quando chegam… (risos)).
– Quais são os processos, os elementos, as sensações e os sentimentos no geral que você sempre procura provocar quando dirige e/ou escreve alguma produção?
Carlos – A depender do tema, a gente procura promover uma reação imediata que provoque uma reflexão e até uma ação propositiva. Geralmente como os temas dos filmes são políticos, sociais, de efervescência popular quando são produzidos, tentando acompanhar a conjuntura, a gente espera contribuir com as mobilizações. E isto pode se dar de forma imediata como relatei acima no caso do documentário sobre a catástrofe humanitária provocada pela Braskem em Maceió, ou os documentários sobre as questões educativas e ocupações de escolas em São Paulo e Paraná em 2015 e 2016, respectivamente. Ou pode se dar também através de filmes mais antigos como o “A Revolta dos Pinguins, estudantes secundaristas chilenos contra o sistema”, de 2007 que foi utilizado para aprender as dinâmicas de ocupação nas escolas paulistas e que reverberaram no Paraná no ano seguinte. Já quando se trata de questões estritamente culturais, se a obra chega à sensibilidade estética do receptor já é um bom indício de que se atingiu o objetivo.
– É possível pensar em um progresso no cinema nacional, apesar das diversas intempéries que a cultura vem sofrendo?
Carlos – Sempre é possível, porque o cinema, embora seja uma indústria de emprego de muitos trabalhadores, também pode ser um empreendimento de menor tamanho em termos financeiros e também atingir as bases sociais e todo o circuito educativo do país com um investimento financeiro mínimo, um pouco de gasolina para começar a andar e no caminho ir encontrando soluções. E esse circuito inclui também muitos trabalhadores, como por exemplo os professores de escola e universidades que utilizam suas horas/aula também para exibir e debater nossos filmes, o que muito nos orgulha. Portanto, acho essa trilha de produção quase artesanal, autônoma e independente, um caminho que também deve ser considerado, não é apenas com muito dinheiro do estado ou da empresa privada que se podem fazer obras que perdurem.
– Para você qual a principal característica do cinema brasileiro?
Carlos – Prefiro falar da que poderia ser, já que a atual e a de quase sempre – excetuando aí Glauber e outros tantos do cinema novo – foi a de imitar o modelo expansivo e imperial dos Estados Unidos e até da Europa, como quase todas as cinematografias da região, fato que se explica a partir de questões da invasão e bombardeio cultural do hemisfério norte (excetuando ai, o nosso irmão México, situado também nesse hemisfério). Porém, hoje há uma revirada desse conceito de submissão cultural em diversos países. Numa época se falava em Terceiro Mundo. E havia um cinema potente que tentava se desvincular dos métodos, formas e conteúdo das estéticas que marcavam a pauta naquele momento e houve grandes descobertas de identidades próprias que se consolidaram. Hoje, existe um cartaz viralizado e ultra utilizado nas redes que mostra o mapa do continente americano invertido. É justamente essa a caraterística que deveria prevalecer no cinema brasileiro e latino-americano, nos darmos a devida e justa importância no concerto do cinema regional e mundial, e ocupar o topo do desenho, nosso norte é o sul.
– Comente conosco sobre seu processo de elaboração de roteiros.
Carlos – Nos documentários trabalho sem roteiros clássicos. São mapas iniciais de produção e investigação que aos poucos vão se transformando em desejos que confluem na convocação dos entrevistados, passo fundamental para o sucesso do empreendimento. Depois vem o estudo da produção discursiva deles, na procura de materiais de pesquisa e finalmente na tentativa de achar o roteiro pronto na busca do fio de Ariadne para sair do labirinto do Minotauro, com a edição pronta a ser construída nesse percurso. Isto está revestido, claro, de uma ideia política anárquica e livre, onde não existe nada pronto e acabado, longe de um roteiro predefinido que tudo prevê e que quando atinge o objetivo perde muito do que foi construído, como parte das esquerdas que disputam o poder pelo poder mesmo nas eleições do sistema. O meu trabalho está inserido até o pescoço no âmbito político, portanto, dar uma forma desde o início ao conteúdo procurado é fundamental para a obra ter uma presença política firme que atravesse o tempo atingindo a maior camada possível das lutas sociais, completamente distante das gravações das denominadas campanhas políticas, que morrem assim que se termina de contar os votos.
Suas últimas palavras (fique à vontade).
Hasta la utopia siempre!
Catálogo de filmes e livros: www.lamestizaaudiovisual.com.br
Canal de YouTube: Carlos Pronzato
Instagram e Facebook: Carlos Pronzato
* Entrevista originalmente publicada no site de cinema português Cinema7Arte