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Coluna de Nathalia Bezerra 

 

 

Nathalia – Te recebo por aqui nesse finalzinho de domingo com muito carinho, Lari! sinto uma alegria enorme por tu ter aceitado o convite de vir por aqui trocar umas palavras e umas ideias comigo. quero começar te contando de uma frase da Ana Martins Marques que me apareceu diversas vezes nos últimos dias, e cada vez que eu a encontrava levava aquele susto seguido de um riso concordando secretamente com ela. A frase dizia: “o que nos aconteceu/o que não nos aconteceu/têm o mesmo peso no poema”. Esse mistério e essa coisa quase-fictícia que abraça um poema é algo que me apaixona muito: a forma como as palavras chegam, uma intimidade quase nossa. me conta um pouquinho como é pra tu, Lari: na tua escrita, o peso dos acontecimentos e dos não-acontecimentos são os mesmos nos teus poemas?

 

Lari Nolasco – Nath querida, alegria danada estar por aqui, viu? estou acompanhando o seu pelas tuas palavras e achando as trocas tão bonitas. vamo que vamo. eu trombei com esses versos da Ana Martins por esses dias também, fiquei de orelha em pé e torno a pô-la diante dessa questão que tu me coloca. sim, eles têm o mesmo peso. no interior da malha ficcional, em prosa ou poesia, tudo é acontecimento não importa a natureza. e aí a gente poderia pensar um pouco sobre a própria palavra “acontecimento”: que é mesmo? diz do quê? diz do mundo desperto somente ou diz mais: do que erguemos quando dormimos, quando estamos apaixonades, etc etc?  vê que é meio expansivo, né? pois, pra mim, ACONTECIMENTO diz das coisas todas que se tecem num movimento espiralado entre vida factual, por assim dizer, e vida fabulada. é uma distinção muito ilustrativa essa porque a nossa vida factual é absolutamente fabulada, rs. o Cândido fala disso em “Direito à literatura”.

 

sobre o poema enquanto ficção: absolutamente! é bom lembrar sempre que o poema conta. contou pra cantar, hahaha. (eu, particularmente, sou entusiasta dos que contam cantando <3). digo isso porque costumamos associar a poesia à esfera do sonoro, do imagético, ao suor do ourives talhando a palavra e esquecemos de atentar, muitas vezes, para a dimensão narrativa ou ficcional do texto poético. e, olha, essas dimensões não se distinguem dentro do poema: formam juntas um só organismo. eu tenho experimentado trabalhar diferentes dicções dentro dos  projetos de escrita. por exemplo, numa delas tento compor uma voz que me informa a voz da minha vó: suas ondulações, as escolhas lexicais dela, as interjeições que mais utiliza, o modo com que costuma contar histórias, etc. uma voz antiga. é um trabalho de ouvido, sabe? e é muito prazeroso porque é também um movimento de ir em direção ao que me seduz. ao que tem mais apelo aqui dentro. eu conto histórias do jeito que gosto de ouvi-las. pra fechar esse fala, vou inserir aqui um trechinho dum poema seriado chamado “os grito daquela praga” pra exemplificar. ele está terminado mas não publicado, acho que sai em breve por aí. o escrevo a partir de uma fotografia do acervo pessoal de minha mãe. ah, o excerto abaixo integra a parte 1, ao todo são 5 partes.

 

 

(…)

nada mudava o prumo daquilo

os grito

os grito

daquela praga

num deixava nossa sombra,
fia

 

 

 

foram quatro noite encarriada

tucaiando os terreiro do meu padim

 

 

 

mas ele sabia,

em cristo que sabia

 

 

rasga-mortaia num

guarda corpo quente.

 

(…)

 

Nathalia – Assim como tu, sou entusiasta dos acontecimentos e de quem conta cantando. penso que a poesia tem mesmo uma sonoridade, um ritmo, um tom. e que por vezes a voz pode ocupar um lugar de dar matéria a um texto, de sustentar uma materialidade. dia desses eu fiquei numa viagem enorme, pensando se é possível na poesia existir uma polifonia, se é possível coexistir várias vozes em um poema. passei horas pensando em eu lírico, se havia algum jeito de dizer uma voz que não fosse a de quem escreve. quando tu fala da composição como se fosse a voz da tua vó, e de fazer da escrita esse exercício primeiro de escuta, me lembra de uma outra pergunta: como aparece a dimensão da oralidade nos teus textos? já me aconteceu várias vezes de precisar reescrever um poema depois de ler em voz alta, porque virava outra coisa quando passava pela minha voz e pelo meu jeito de falar as frases. me conta um pouquinho do que aparece nessa viagens todas entre voz, som, polifonia, monólogos e oralidades?

 

Lari Nolasco – nath, retorno hoje, 27 de março, à nossa conversa.

 

curioso responder à sua questão quando tomei eu uma rasteira bruta de uma gripe que me levou, inclusive, a voz. me interessa muito pensar a realização da voz quando envolvida por tecidos machucados. vez por outra, quando gripo, faço experimentações de leitura a partir dessa voz ferida. busco pensar em que consequências, por exemplo, a não passagem do ar pelas narinas (que estão congestionadas) imprimem no sons das palavras e na atmosfera geral da leitura. é uma forma, também, de tentar desarticular, pelo menos no trabalho que realizo, uma pretensa ideia da voz ideal. acabo de perceber que tangenciei a resposta à sua pergunta.

 

sempre leio meus poemas em voz alta quando acabo de escrevê-los. para mim, é crucial que eles soem como algo que poderia ser dito em uma situação “real” de fala. da minha fala (ou, no caso do exemplo acima, da fala de minha avó). tento construir um projeto de escrita que chegue mais ao ouvido que aos olhos de quem para pra me ler.

 

importante pontuar que é ficção mesmo o que tenho chamado “minha fala” dentro desta rede de dicções. digamos assim: a minha voz, quando elaborada textualmente, outra-se. é editada. não sei se me faço entender, nath. mas acredito que a voz (ou, como prefiro chamar: dicção) é tudo que dela conseguimos lembrar.

 

Nathalia – Tu falou uma coisa ali tão bonita sobre escrever de ouvido, de escrever como quem fala. acho que muito da beleza ordinária da vida cotidiana tem a ver com contar o mundo do jeito como passa pelos nossos olhos, pela nossa boca, pelos nossos pés. de quais modos tu percebe essas marcas do teu cotidiano nos textos que faz? aproveitando essa pergunta, te trago também um aparecimento que escutei um dia desses. conversando sobre prosa e poesia com uma pessoa muito querida, perguntei se seria possível que existissem personagens na poesia, ou ainda: se seria personagem a pessoa que escreve num texto. apaixonadamente uma amante pessoana, a resposta que recebi foi de que fernando pessoa dizia ser mais fácil outrar-se em poesia do que em prosa (talvez por isso os vários outros nomes, as várias outras pessoas). me diz lari, tu costuma escrever em prosa e poesia, ou já teve alguma vez sensação de onde ou como é mais fácil ser outra, fazer-se personagem, escrever tua própria ficção ou uma vida inventada?

 

Lari Nolasco- a respeito da escrita de sua dissertação, Bianca Gonçalves, grande poeta e pesquisadora de literatura portuguesa, comenta a imposição da linha nos textos acadêmicos. na época [isso aconteceu em um das oficinas por ela ofertadas], se não me falhe a memória, ela fazia referência a isso como uma dificuldade para se relacionar com o texto corrido. e eu achei essa uma colocação justíssima. para mim, a dificuldade em escrever prosa reside também na inflexibilidade da linha. já tentei experimentar a elaboração de contos e tal, mas sem jeito. a linha endurece na minha mão. gosto do verso. dessa impossibilidade de ir adiante, como diz Agamben.

 

personagem eu sempre sou, viu? não acho que exista a possibilidade do retrato tal qual. a gente se edita e se ficcionaliza para o/a outro/a o tempo todo. o texto é só mais uma dimensão disso – a diferença é que, nele, lançamos mão de mais requintes e temos um pouco mais de clareza do que se está em jogo.

 

Nathalia – Ainda falando de escrita em poesia, sempre fico muito encantada com a possibilidade de que, pela escrita, se tenha um outro íntimo desconhecido/a que nos lê. dia desses anotei em algum cantinho de folha em como tem uma força peculiar quando se diz: “pra você”. acho quase absurdo o impacto dos pronomes pessoais de segunda pessoa: é teu, é pra você, é pra tu, te digo, te conto, te quero, te ouço, é tua essa carta. é como se houvesse um corpo, um nome e um endereçamento, ainda que não esteja escrito. me conta um pouquinho desses teus endereçamentos de escrita, sejam reais ou inventados?

 

Lari Nolasco – querida, te escrevo agora dum finalzinho de terça meio pendurado, rs. muito cansaço e bole-bole. gosto da pergunta sobre os endereçamentos poéticos. engraçado você tocar nesse ponto, há uns meses estava me remexendo numa pesquisota (uma pesquisa breve, haha) prum artigo que estava escrevendo a respeito. durante o percurso, achei, num texto escrito pelo Ana C., uma tradução livre que ela fez dum excerto do “Folhas da relva”, do Whitman:

 

“Amor, isto não é um livro, isto sou eu, sou eu que você segura e sou eu que te seguro (é de noite? estivemos juntos e sozinhos?), caio das páginas nos teus braços, teus dedos…”. (WHITMAN apud CESAR, em “Ana Cristina César: crítica reunida e tradução”)

 

pralém dessa imagem tão bonita da poeta que escorrega, no ato da leitura, para os braços de quem a lê, acho ter uma questão delicada aí e que é, também, um topos na crítica de poesia: a leitora, essa interlocutora prevista embora indeterminada (dificilmente temos controle sobre quem nos lê, ainda assim seguimos sendo lidas). a leitora dança com as fugas dos pronomes, dos endereçamentos – mesmo que não tenham sido pensados para ela ou ele. raramente é, na minha opinião. digo: a gente escreve para ser lida, é óbvio, mas não necessariamente para quem nos lerá. pessoalmente, não lembro de escrever especificamente pensando nessa minha interlocutora indiscreta. gosto de pensar, inclusive, em termos de interlocução ao  invés de endereçamento. vejo que interlocução diz mais e melhor dessas muitas vozes do poema. mas é isso: o poema está sempre a caminho de, em devir. tecemos nossos endereçamentos (eles inventados ou reais [é possível permanecer “real” ou não-ficcionalizado mesmo quando no tecido poético?]) mas o poema está sempre em fuga. ele é isso que nunca chegou a chegar.

 

fiz uma digressão, talvez tenha fugido um pouco da pergunta, haha.

 

Nathalia – Passei os últimos dias dessa semana lendo muito ana c. e talvez por isso eu tenha ficado tanto me perguntando sobre essa direção ao outro, esse destino, essa interlocução. eu amo o texto dela correspondência completa que é uma única carta. dia desses salvei um trechinho de um poema dela (sem título, e eu amo o fato de muitas coisas sobre ela não terem título porque sou péssima em dar nome às coisas. e tu?) que dizia uma coisa tão bonita, até já decorei esse pedaço: “teu gosto, tua cor, teu som, teu meu”. tem alguma coisa muito secreta e muito íntima no uso dos pronomes. eu também gosto demais de pensar que o poema é essa coisa em fuga, que não tá nas nossas mãos. essa coisa escorregadia e breve, sabe? uma das coisas que mais gosto nisso que tu me diz sobre escrever pra ser lida, ainda que não se saiba por quem. é justamente o fato de não saber por onde vão os sentidos, as leituras. esse não-saber onde a palavra vai tocar em outra pessoa. tem algum texto, poema, escritora ou escritor que te toque profundamente de modo inexplicável?

 

Lari Nolasco – daqui te leio na coceira deste sábado pré-eleição — e também inicinho de outubro, o mês mais perfumado do ano. querida, essa coisa dos títulos é curiosa: comigo acontece, por vezes muito raras, de o título nascer [naicer: como gosto dessa realização fonética do sc] com o texto. como coisa esperta de si, independente (e é, né não?). em outras,  vai pela demanda do cansaço mesmo. eu “desisto” do título prêle poder vir. e vem. acontece também de eu revezar os títulos dos textos. há um poema meu que ora o chamo “Um dorso” ora “Mariana”. e, sabe, o não-título é em si um título, ou, como prefiro, um nome. são escolhas que fazemos com os textos.

 

muitos e muitas poemas e poetas me tocam e me tiram do prumo, mas nada, até hoje, me comoveu tanto quanto aquela tradução feita pelo Paulo Mendes Campos do “Onde jamais viajei”, texto do e.e cummings. copio-o aqui, integralmente. pega a rasteira:

 

Onde jamais viajei (e. e. cummings) [tradução de Paulo Mendes Campos]

 

onde jamais viajei, alegremente além

de qualquer experiência, teus olhos têm o silêncio deles;

no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram

ou que não posso por perto demais tocar…

 

o teu mais leve olhar facilmente me descerra

embora como os dedos eu me tenha cerrado.

sempre me abres pétala por pétala como a primavera

abre (tocando-a jeitosa, misteriosamente) sua primeira rosa

 

ou, se te aprouvesse encerrar-me, eu

e minha vida nos fecharíamos em beleza, subitamente,

como quando o coração desta flor imagina

a neve cuidadosamente por todo lado a tombar;

 

nada do que nos é dado a perceber neste mundo se iguala

ao poder da tua imensa fragilidade: cuja textura

me compele com a cor das suas pátrias,

que me cedem a morte e o sem fim a cada alento

 

(não sei o que vai em ti que se fecha

e se entreabre; apenas alguma coisa em mim entende

que a voz dos teus olhos é mais funda que as rosas todas)

e ninguém, nem mesmo a chuva, tem as mãos assim tão pequenas

 

para mim, esse poema está “más allá” sempre & sempre. quê que a gente faz diante dum negócio desses? eu o assomo, o cerco de palavras e dedos. só. e é bom que seja assim. tempos atrás vi, no youtube, uma leitura feita pelo Nilton Resende dum texto que não tenho certeza ser dele, mas a certa altura diz assim:

 

“como ficar impassível diante do belo?”

 

vê? acho ser essa a síntese justa.

 

me conta dos teus textos inexplicáveis, nath!

 

Nathalia – Tenho prestado tanta atenção nisso ultimamente, lari: em como escrever também ensina a desistir. saber a hora de parar, de abandonar um texto, de voltar às pressas, de não mais voltar. lindo esse poema que tu mandou do e.e. cummings. gosto demais dele também. na verdade eu sou bem apaixonada por poesias visuais, poesia concreta, essa coisa de quando o poema sai do papel. acho que gosto da sensação de que as palavras sejam quase-coisas. fico pensando nisso, se é possível que a palavra conjure uma presença, que a palavra seja a própria coisa dita. acho que o poema mais inexplicável que já li é o nesta noite neste mundo, da pizarnik: foi o texto que me fez mudar todo meu projeto de pesquisa logo quando comecei na vida de pesquisa em estudos literários, e hoje faço essas andanças juntinho dela. vou colocar alguns trechinhos aqui, com a tradução da nina rizzi que pra mim é das mais bonitas:

 

“e nada é promessa

entre o dizível

que equivale a mentir

(tudo o que se pode dizer é mentira)

o resto é silêncio

só que o silêncio não existe

 

[…]

 

não

as palavras

não fazem amor

fazem ausência

se digo água beberei?

se digo pão comerei?

nesta noite neste mundo

extraordinário silêncio o desta noite

 

[…]

 

minha pessoa está ferida

minha primeira pessoa do singular

 

escrevo como quem tem uma faca alçada na escuridão

escrevo como estou dizendo

a sinceridade absoluta continuaria sendo

o impossível

oh fica um pouco mais entre nós!”

 

y nada es promesa

entre lo decible

que equivale a mentir

(todo lo que se puede decir es mentira)

el resto es silencio

sólo que el silencio no existe

 

[…]

 

no

las palabras

no hacen el amor

hacen la ausencia

si digo agua ¿beberé?

si digo pan ¿comeré?

en esta noche en este mundo

extraordinario silencio el de esta noche

 

[…]

 

mi persona está herida

mi primera persona del singular

 

escribo como quien con un cuchillo alzado en la oscuridad

escribo como estoy diciendo

la sinceridad absoluta continuaría siendo

lo imposible

¡oh quédate un poco más entre nosotros!”

 

 

tem um trecho muito específico no poema sujo do ferreira gullar que, da primeira vez que eu li, me deixou muito triste e eu não entendia o motivo. até hoje não sei. dizia (e não vou conseguir aqui reproduzir a visualidade toda da poesia dele, de tão bonita e singular):

 

            mas que é o corpo?

            meu corpo feito de carne e de osso

esse osso que não vejo, maxilares, costelas,

flexível armação que me sustenta no espaço

            que não me deixa desabar como um saco

            vazi

que guarda as vísceras todas

                        funcionando

[…]

 

                        meu corpo

que deitado na cama vejo

como um objeto no espaço

            que mede 1,70 m

            e que sou eu: essa coisa

            deitada

            barrigas pernas e pés

            com cinco dedos cada um (por que

não seis?)

joelhos e tornozelos

para mover-se

sentar-se

levantar-se

 

meu corpo de 1,70 que é meu tamanho no mundo

            meu corpo feito de água

            e cinza

que me faz olhar andromeda, sírius, mercúrio

            e me sentir misturado

a toda essa massa de hidrogênio e hélio

            que se desintegra e reintegra

            sem se saber pra que

 

tinha dias que a frase me animava, somente pela possibilidade de que eu seja, finalmente, só uma superfície limitada no espaço. logo depois tem alguma frase que ele fala de um corpo feito um saco de ossos, alguma coisa de andrômeda e outros pedaços que se desintegram sem saber pra quê. já não lembro quantos anos eu tinha na época, mas eu ainda não tinha um metro e setenta. acho que são esses dois poemas que me marcam um bocado. não tenho bem o costume de saber escolher dentre as minhas coisas preferidas no mundo, sou péssima com decisões e escolhas únicas mas penso que dessa vez a paixão tem nome, endereço, jeito. palavra. se digo água, beberei? se digo pão, comerei? acho ainda que pelo poema ainda resta a sede, a fome. mas de um jeito diferente, como se o trabalho com a palavra fosse jeito de que se cave ainda mais a ausência dessa língua que a gente fala. fico me perguntando demais sobre isso, se a palavra conjura presença. me conta um pouco do que te aparece sobre essas loucuras pequenas?

 

Lari Nolasco – me vi às voltas com estes poemas e estas questões colocadas por você (tanto é que, ao longo desse nosso papo de meses, deixei para voltar nesse ponto só agora, na reta final). embora seja um topos na reflexão a respeito da linguagem poética, confesso que costumo sair pela tangente quando nele me vejo enredada porque acho que sem sentido me demorar demais em evidenciar uma  limitação da língua, sabe nath? Pelo menos é a impressão que tenho quando participo de circuitos acadêmicos que tratam disso. a linguagem não presentifica o mundo porque o transcende. está além dele. são, por assim dizer, sistemas de ordens diferentes. e é essa é graça do negócio, né? Já imaginou encontrar em poesia/literatura exatamente aquilo que, todos os dias, encontramos ao acordar? O caminho talvez seja esse: a poesia está mais perto do sonho que da realidade.

mas, sim, a língua conjura uma ausência, né? Em termos gerais, se digo água, não, não a beberei senão como a lembrança vaga do que, para mim, seria bebê-la.

 

ai, nath. respostinha fuleira essa minha, haha.

 

Nathalia – gosto demais de saber também um pouquinho do momento (exato ou não) em que tu se deu conta da paixão ou do desejo de literatura. tem vezes que as lembranças todas se misturam, e pelo menos comigo eu só sei da hora em que a escrita chegava antes de mim. ou ainda: aquela sensação de que não dá pra fugir dessa vontade quase incontrolável, dessa coisa que da escrita sai me arrastando junto. sei nem te explicar como é, e talvez seja uma pergunta meio abstrata mesmo: essa da hora, do momento, do choque, do desejo. me conta como foi pra tu?

 

Lari Nolasco – minha relação com a escrita poética/literária é recém-nascida. comecei a escrever num supetão nos últimos três anos, logo depois da mudança de estado, casa. até aí nunca tinha sentido a necessidade disso. nunca tinha sido chamada. se fosse me guiar pela Jornada da Heroína (Jornada do Herói via Campbell), a urgência da escrita chega muito tardiamente quando eu já tô enfiada, girando pra lá e pra cá no ventre da baleia, kkkkkk. fui rompida, nath, por isso escrevo: pra suturar um corte que não sara. e talvez não sare nunca, e esse é o alívio. eu me divirto costurando-o. “a poesia é pra quem precisa”, diz a nina rizzi.

 

Nathalia – é como se a escrita tivesse uma voz necessária, que grita e sussurra. que puxa pelo braço. que engole a gente, que traz a vida de volta. pensa numa coisa bonita que eu acho de viver tentando suturar uma ferida nossa que não sara. eu acho inclusive que às vezes é jeito tão frágil e vulnerável de existir, aquela hora de um texto nascendo na nossa frente. feito fratura exposta mesmo, essa coisa que eu ainda gosto de dizer que é como se tivesse carne e osso que nem a gente. ainda não aprendi a lidar com o estranhamento inevitável de achar algum texto que fiz exageradamente brega, repetido, igual à tudo o que já escrevi. eu costumo ser uma acumuladora de textos incompletos, não consigo descartar totalmente. junto frases soltas, ideias inacabadas. como tu lida quando/se acontece algum estranhamento teu frente a algum texto que tu fez? tu reescreve, faz de novo, rasga, deixa pra outra hora?

 

Lari Nolasco – quando me acontece de ficar entojada de um texto eu o abandono. mas é um abandono temporário porque eu sempre o revisito. mexo um tico ali, outro tico acolá. penso a decantação como um dos momentos mais importantes dos textos, sabe? é bem o processo de preparação da mandioca até chegar farinha nos nossos pratos: a gente faz a arranca das raízes, raspa bem, lava, as deixa descansar durante semanas num caixa d’água bem vedada com lona, retiramos do molho e levamos para prensagem, peneiramos aquela massa úmida e endurecida na qual se transformou depois da prensa para só depois torrá-la. é exercício de espera e paciência, sabe? a única diferença aqui é que o texto não chega a. mandioca se faz farinha enquanto o texto se faz. a escrita é o movimento do processo a olhos vistos ou, aliás, a olhos vendo. por isso não me aflijo com a edição/revisão de um texto já publicado em versão anterior, por exemplo. acho que temos mais é que meter a mão e deixar o texto correr em suas mais diversas versões pelo mundo. não acredito na escrita como coisa pronta.

 

me mostra um desses teus incompletos, mulher!

 

xêro.

 

Nathalia – mulher, tu escrevendo desse jeito parece que carrega pelos braços, viu? tenho aqui um pedaço de texto que já futuquei e reescrevi várias vezes. tento misturar com outras palavras de outras horas, de vez em quando faço vários pedacinhos dele e corto em partes diferentes pra colocar em outros cantos, e ainda não achei lugar. no fundo, acho que eu gosto mais é dessa sensação misteriosa de uma coisa meio inacabada, essa coisa que só acontece quando a gente não acha canto. acho que diz um pouquinho de mim também, que sigo sendo tão mais encantada quando vejo uma coisa muito bruta, muito crua. te mando aqui o trechinho que sempre arranja um jeito de desencaixar comigo e de tempos em tempos eu volto e digo: tá faltando alguma coisa aqui (ainda bem). acho que é essa sensação de incompletude e de falta da escrita que me faz voltar sempre pra ela. espero que seja sempre esse arrodeio em torno de uma coisa oca, a palavra.

 

te mando esse texto, que o chamo de água bruta. tem três partes, não gosto muito da segunda. vou te mandar também incompleto, já que sinto que nunca o terminei:

 

  1. há um procedimento escorregadio do ato de olhar, uma coisa meio gasta. era pra ter avisado que sou mais bicho do que gente, em segredo há uma fuga da qual não escapo (essa, que se faz de olhos abertos) e quando chegar nessa hora absoluta – a do silêncio – essa cidade morre

 

III. veja só, isso que se arranca um poema feito segunda pele

falo baixo sem intenção de que recebam os lábios

você com a tão conhecida ousadia de brindar os olhos

essa combinação, esse jogo, essa letra aberta

outro procedimento:

ver de perto, preparar os pés pra fugir

escutar o lamento de uma palavra quando morre

 

(me conta, quero um incompleto teu também)

Lari Nolasco – faz um tempinho desde que conversamos sobre o poema ser essa coisa que não chega a ser. por isso, talvez eu me repita falando que o poema, eu creio, não tem estado por ser ele todo um deslocar-se sentido a um não-destino. o poema está sendo. daí que acho vir a calhar essa nossa reflexão sobre o poema que não termina. na verdade, ele nunca termina, né? nunca está pronto. a poesia põe linguagem e mundo em suspensão. no teu poema há algo que escapa: e o que é? pois bem, temos dito.

 

tenho este trecho (penso-o como aquelas histórias que só se contam em volume muito baixo):

 

E como quem confia um segredo

tateei teu dorso

com o cenho,

 

Nathalia – me encanta muito o jeito como nossa conversa atravessa por vários rumos. quando um assunto engole o outro, quando uma história aparece no meio de tudo, quando chamamos outras pessoas pra conversar nesse nosso texto. é uma das minhas coisas preferidas, esse apaixonamento por coisas incompletas.  um inacabamento, talvez. ficaria aqui por mais bastante tempo só pra ver de perto esse teu jeito de pegar a palavra com as mãos: dedilhar, amassar, costurar, rasgar, morder. parece que contigo a palavra vira esse outro corpo. é bonito de ver. agora me conta, antes da gente ir,  onde podemos encontrar mais do teu trabalho? (se tu tiver locais onde escreve/publica textos, se tiver livros à venda onde é possível adquirir, formas de te encontrar por aí, como instagram, site, etc)

 

Lari Nolasco – nath, tu tem esse dom de comover a gente com duas três palavras, viu? me vejo bonita por elas – essas tuas palavras. tanta coisa sucedeu nos entres dessa nossa conversa de meses. mudanças dentro de mudanças dentro de mudanças. as variações de textura da nossa prosa diz disso também. obrigada pelo convite e pela interlocução, querida. foi especial tecer esse espaço contigo.

 

meu trabalho pode ser encontrado tanto no Algodão Doce (Ipêamarelo, 2022), livro que escrevi a quatro mãos com Jaiane Beatriz (e pode ser comprado diretamente conosco) quanto na minha mais recente zine os grito daquela praga (também pode ser adquirida comigo). Além disso, publiquei em algumas revistas. Posso deixar alguns links abaixo:

 

 

Poemas em revistas on-line:

Felisberta: https://felisbertazine.wordpress.com/2021/08/10/felisberta-10/

Ruído Manifesto: https://ruidomanifesto.org/quatro-poemas-de-lari-nolasco/

Totem & pagu:

https://totemepagu.wordpress.com/2022/02/24/solamente-una-mujer-latino-americana-experiencias-visuais-de-larisse-nolasco/

#1 Aboio (Voz: impressão do corpo): https://aboio.com.br/aboio-acessivel/#revista-aboio-1

 

Algumas vídeo-performances:

https://www.instagram.com/p/ChFxlJNJch1/

https://www.instagram.com/p/CU5bcnJJo1R/

https://www.instagram.com/p/CSMo29DnEgC/

https://www.instagram.com/p/CP_KBgKpgV6/

https://www.instagram.com/p/CS4dWECHztQ/

 

 

 

 

 

 

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