Texto de Lícia Souto
O sorriso largo e o turbante imponente emolduram um rosto leve porém firme, que já se tornou conhecido nos quatro cantos das Alagoas. Lucélia Tayná, mais conhecida como Luh Turbantes, nasceu no axé, todos os seus familiares pai, mãe, avós e avôs são de terreiro.
“Sou nascida e criada dentro de um terreiro xambá aqui em Maceió, inclusive um que sofreu com a quebra de 1912, mas até o longo de meus dez anos de idade eu não podia assistir, frequentar e até participar das festividades realizadas na casa de meu padrinho (era o famoso medo da polícia chegar, pois eles já vinham dessa quebra e de todas as proibições policiais na época, onde afastavam as crianças e adolescentes dos terreiros).”, relata Lucélia.
Antes de se reconhecer como Lucélia, filha de oxum, mulher, preta, mãe, ekedji, dançarina e rainha dos turbantes, Luh conta que vivenciou uma infância solitária, era uma criança curiosa mas não teve muitos amigos, sempre foi a menina pobre e preta da escola, que era apelidada grosseiramente de macaca e macumbeira.
Durante um passeio escolar que marcava a passagem da tocha por Maceió, ela recorda que os tambores prendiam sua atenção, logo avistou de longe aquele povo dançando, cantando e vibrando ao som das membranas ancestrais. Passaram-se alguns dias e o Afoxé Odô Iyá com um de seus projetos foi até escola em que estudava contando um pouco da história e da importância daquele grupo na cidade, ela então aproveitou o momento e se inscreveu para fazer parte. “Admito, eu não tinha nenhum conhecimento sobre cultura, dança e ancestralidade, mas eu queria e estava decida a me empoderar e mostrar de onde eu vim, tinha perdido meu pai carnal há pouco tempo e eu precisava me encontrar. O Odô Iyá foi como uma porta que encontrei para me conectar com toda essa herança ancestral, então a partir do momento em que cruzo as portas do Ponto de Cultura para o primeiro ensaio, eu senti que era ali. Uma menina curiosa querendo saber e entender sobre as cores e os movimentos dos orixás.”, relata Luh.
Seu processo de transformação pessoal ao longo dos anos ela agradece ao Afoxé Odô Iyá e ao Ponto de Cultura Quilombo Cultural dos Orixás, nas pessoas de Amauricio de Jesus e pai Celio de Iemanjá.
A partir dali, veio a vontade de assistir uma festa religiosa na Casa de Iemanjá, saber mais sobre os movimentos dos orixás, pesquisar e mergulhar profundamente naquilo. A artista conta que a biblioteca Maria Garanhuns faz parte dessa história, eram tardes e tardes em que ficava lendo aqueles diversos livros. No auge de sua juventude, ela recebeu o chamado de Iemanjá e o aceitou, iniciou-se e permanece até hoje no Ilê Axé Iemanjá Ogunté, conhecido como Axé Pratagy.
Dançarina há mais de 15 anos, atua com a tradição afro sendo coreógrafa, turbanteira, coordenadora do grupo Àbúrò N’ilê- Juventude de Terreiro do Estado de Alagoas, conselheira estadual de juventude Religiosa e modelo fotográfica. Participa do Ponto de Cultura Quilombo Cultural dos Orixás, o qual acolhe hodiernamente as oficinas que ministra Ijó Iyenú – Dança da memória ancestral e Ímo Gélé – Turbantes do Saber, consolidando uma trajetória que é marcada pelo profissionalismo e carisma de atuação, na qual a conexão do tradicional e da contemporaneidade é promovida.
“A partir do incentivo de Pai Celio e Amauricio a minha busca começou a ser diária, então eu comecei a vivenciar o axé pratagy e visitar os diversos terreiros de Maceió, eu, uma jovem inquieta que queria e quer todos os dias mais e mais, não parei por ai. Passaram-se alguns anos e Amauricio como coordenador do afoxé me deu de presente uma turma de crianças para minha primeira oficina de dança afro, foi desafiador, pois trabalhar com crianças e repassar esse conhecimento afro ancestral foi surreal. Logo a notícia das oficinas de dança afro tradicional se espalhou, o povo já me conhecia de alguma forma, eu tinha me tornado a Lucélia dançarina do Odô Iyá, aquela começou a estampa os jornais da cidade com seu sorriso e seus movimentos ancestrais.
Natal, Fortaleza, Recife, Delmiro Gouveia e outros foram os locais em que já ministrei minhas oficinas. O tempo seguiu passando e eu inquieta como de costume, conclui o ensino médio e na busca por uma formação que se enquadrasse em meus padrões, eu encontrei o curso de Licenciatura em Dança, dentro da Universidade Federal de Alagoas. Atualmente concilio meu tempo sendo coreografa e dançarina do Odô Iyá, e claro, levando para minhas oficinas minha história de vida e minhas diversas metodologias que encantam os alunos e fazem eles virarem meus afros luxos.”, explica.
Quando reflete sobre o recente episódio da vitória da Grande Rio ao desfilar na Sapucaí com o enredo “Fala, Majeté! Sete chaves de Exu” e seu reflexo significativo para desmistificar a imagem equivocada e preconceituosa sobre Exú, Luh acredita que representa-lo como o que de fato é, o Orixá da comunicação, foi muito importante, ela relembra que assistiu ao desfile pela TV e na hora comentou: “espero que ganhem”, pensa que o barulho na internet vai acontecer sempre que os povos pretos e de terreiros ganhem lugares de destaque. “A sociedade precisa abrir sua mente, conhecer a história do nosso povo e dos nossos orixás, são deuses que estão ligados diretamente as energias da natureza, e isso é uma coisa que todos precisam respeitar, são os quatros elementos principais das nossas vidas, agua, terra, fogo e ar.”.
Agora grávida de seu segundo filho, Luh reflete sobre uma maternidade desafiadora, que por mais que pareça ser linda, é sobretudo inexplicável. Para ela, ser mãe é um desafio cotidiano, até porque ela é não apenas mãe, é mãe de crianças de terreiro, isso significa que essas crianças podem sofrer tudo o que ela sofreu dentro da escola e ficarem caladas, porque ela tem consciência que ainda hoje o preconceito e a intolerância são riscos diários, mesmo havendo leis que asseguram esses direitos e proteções.
A vinda de Ayan, que ainda está no ventre, foi uma surpresa para a artista que não estava preparada de forma alguma, principalmente psicologicamente, mas ela pensa que ele vem em novos tempos. “Quero criar Ayan, como crio Thauan, dentro do terreiro, sabendo que a folha de manjericão acalma, sabendo que o chá de poejo alivia dores, sabendo que a dança é sagrada, sabendo da importância do tambor, e sabendo que o terreiro acolhe e ensina todos os dias que podemos ser médicos, percussionistas, advogados, faxineiros, professores e seremos sempre ali dentro respeitados.”, diz.
“Dentro do terreiro eu sou mãe, fui escolhida e confirmada por Iemanjá, sou ekedji e lá no terreiro seguimos hierarquias. Pai, mãe, filho, sobrinho, dentre outras, e sendo assim vou encontrar sempre um mais velho em idade social me pedindo a benção ou me cuidando como mãe. Isso é importante para minha formação cotidiana de mãe, até porque é assim que aprendi que ensinar é a base de toda educação, ensinar um filho a rezar, comer, falar, dançar e até mesmo caminhar, são coisas que faço em casa com meu filho e no terreiro como ekedji.”
Hoje Lucélia tem cerca de 10 mil seguidores no Instagram, ela relembra o inicio dessa jornada digital que começou de forma amadora lá no Facebook. Começou com vergonha de falar em frente as câmeras, mas aos poucos foi se deixando levar, hoje ela compartilha espontaneamente através dos stories seu dia a dia na casa de axé, dicas sobre turbantes e fotos exuberantes dos mesmos que coroam sua cabeça. Ela encontrou na rede social uma porta para ser ouvida, para trazer reflexões sobre sua religião, dança e o contexto cultural do turbante. “Meu propósito sempre foi ajudar outras mulheres a elevar a autoestima e se sentirem bem com elas mesmas. Já participei de diversas lives e sinto que consegui quebrar assim o preconceito impregnado em diversas pessoas que circulam nas redes sociais.”, explica.
O título de Rainha dos Turbantes não é em vão
O termo surgiu em uma brincadeira entre irmãos de santo, amigos, seguidores e admiradores do trabalho feito com ele. Nunca foi oficializado por nenhuma premiação, por exemplo, mas o termo poderoso caiu na graça do povo e onde Lucélia chega as pessoas já apontam e dizem: “olha a rainha dos turbantes”. Ela fica contente com o reconhecimento, espera que um dia o que começou como uma brincadeira possa ser oficializado de alguma forma, mas por enquanto ela segue viajando de forma presencial e virtual levando nas oficinas a história dela e de seu povo.
Em meio a esses planos e expectativas para o futuro, ela revela o desejo de abrir a própria academia de dança afro dentro de Maceió. Além disso, tem desejos e planos mais comuns também, como alcançar a estabilidade financeira, já que como é de conhecimento comum, viver da arte e da cultura não é fácil. Mas uma mulher de Oxum não desiste, segundo ela.
Nesse aspecto de olhar para o cenário cultural local, ela enxerga que ainda é algo muito fragilizado. “Diante do momento atual, consigo perceber que muitos não conseguem se manter e vão acabando aos poucos, isso é triste, nosso estado está repleto de grupos culturais ricos em suas danças, musicas, roupas e cânticos. Mudaria tanta coisa, mas o meu maior desejo é que as datas comemorativas afro do estado fossem mais valorizadas, Lavagem do Bomfim, Xangô Rezado Alto, Saúre Palmares até o oito de dezembro e outras. Imagino grandes festas, claro, mas também sei da importância da formação, se apropriar dessas datas e criar maneiras de formar e informar nossa sociedade sobre a importância desses momentos para o nossos povo.”, conclui Luh.
Luh dos Turbantes protagoniza a décima capa da Revista Alagoana.