Coluna de Emmerson Duarte

Gabriel García Márquez disse que ao ler a primeira frase de A metamorfose quase caiu da cama. E de fato na história da literatura há poucos exemplos de início de um livro que seja tão impactante quanto o começo do conto sobre Gregor Samsa, um homem que certa manhã, após sonhos intranqüilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num insto monstruoso.

A metamorfose é, juntamente com O processo, a obra mais famosa de Franz Kafka. O leitor desavisado, poderia se perguntar o que mais é possível ser dito sobre esse livro, publicado em 1915, largamente lido e comentado desde então. Porém uma característica dos clássicos é a sua permanência, e sua capacidade quase inesgotável do que pode ser sentido, pensado e expressado com o auxílio deles.

O que A metamorfose nos fala em 2020? Ao se ver metamorfoseado como um monstruoso inseto, a preocupação de Gregor é com a possibilidade de se atrasar e não conseguir pegar o trem e cumprir seu dia de trabalho como caixeiro viajante. Sua família se horroriza com sua transformação, repudiando-o. Gregor passa a viver trancado em seu quarto, e lá fica esquecido. A situação que inicialmente causou horror passa a ser tratada com indiferença à medida que a família Samsa tenta se adequar ao novo normal daquela situação.

Kafka subverte as expectativas normais de uma narrativa.

Ele não inicia com a apresentação de personagens e de ambiente para então se encaminhar ao ápice da narrativa com a metamorfose do protagonista. O caminho traçado pelo escritor é justamente o oposto.A metamorfose se inicia com a transformação fantástica de Gregor. A situação surreal que causa choque é que abre a narrativa. Mas a partir desse ponto o que acompanhamos é uma adequação àquela situação, não somente por parte de Gregor, mas por sua família também. Essa escolha de estrutura narrativa de Kafka permite que o leitor, ironicamente, não sinta tanta estranheza e horror pela metamorfose em si. O que causa aversão e incômodo é a indiferença a que Gregor foi lançado em seu novo cotidiano.

Para entender um pouco melhor essa estranheza podemos ir para outros domínios além da literatura. Freud, um contemporâneo de Kafka, escreveu O infamiliar, em 1919. Nesse texto, Freud descreve o infamiliar como algo que desperta angústia e horror, e que também remete a algo que nos é íntimo e conhecido. Algo que de certa forma nos é familiar, embora não saibamos ao certo como. Sentimos que aquilo causa horror e ao mesmo tempo notamos que esse algo não nos é totalmente estranho. Um horror que nos toca, e que podemos sentir como se fosse algo que conhecêssemos, mesmo que não o seja. Freud fala que esse efeito infamiliar é facilmente alcançado quando as fronteiras entre fantasia e realidade são apagadas.

A metamorfose que causa horror é a mudança de sua família com ele, e não a transformação de um humano em um inseto. Muito mais do que o desconforto com a transformação, é a posição dos que estão ao seu redor que causa incômodo ao leitor. O que desassossega na experiência de Gregor, o que tem de mais cru e cruel, é a aceitação e indiferença banal pela situação dele. Indiferença que vai gradativamente desumanizando-o perante os outros.

Com A metamorfose temos uma narrativa que começa com o fantástico e que vai gradativamente ao retorno do banal. O que inicialmente causava horror se torna sinônimo de irrelevância.

Fascismo, racismo, machismo, desigualdade social, COVID, são alguns dentre tantos nomes de um horror que se tornou algo tratado de forma banal. A metamorfose nos escancara algo muito familiar a nós, mesmo que de modo infamiliar.

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