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No canto que é tanto nosso, com Maryana Damasceno

Texto por Nathália Bezerra

 

Nathália – Oi Maryana! Quanta felicidade em te receber por aqui nesse começo de semana. Vamos ao longo dos dias nos escrevendo e trocando sobre processos criativos, de escrita, de arte. Acompanhando um pouco do teu trabalho, achei incrível que tu escreve literatura de cordel. Me conta um pouquinho sobre como tu começou a escrevê-los, e como se começou tua relação com a escrita?

 

Maryana – Oi, Nathalia! Para mim, a escrita sempre foi um processo importante de expressão, tanto que escolhi Jornalismo para seguir carreira. Mas meu encontro com a escrita literária veio na vida adulta. Sou uma forte apreciadora das minhas raízes nordestinas, e segui durante muito tempo apenas como consumidora da nossa cultura. Cada vez mais envolvida com ela, aflorou em mim que qualquer cultura, para se manter viva, deve ser multiplicada. Enquanto universitária (2009-2012), na disciplina de Estética da Comunicação, fui provocada, juntamente com a turma, a levar os assuntos estudados para serem apresentados de formas diferentes e criativas. E foi assim que escrevi meu primeiro cordel, que me lembro de um trecho que trazia a minha própria definição de um termo de experiência estética:

 

“Quanto ao Flash Aesthesis

é toda percepção

sensível do objeto

que em qualquer situação

de prazer, ou desprazer

o importante é você ter

sempre alguma emoção”

 

Eu nunca havia escrito Literatura de Cordel antes, mas me vi com uma grande facilidade de produzir em setilha, que é um dos formatos dessa poesia, caracterizado por ter sete linhas que rimam entre si. De lá para cá, produzi diferentes textos, mas sem frequência determinada ou meios de publicação. Em 2020, com a chegada da pandemia e do isolamento social, vimos com muito mais intensidade a importância da arte para a nossa vida e saúde mental. Diante de tanta angústia e do descaso do governo com a situação, resolvi, como desabafo, escrever um texto direcionado exclusivamente aos eleitores do atual presidente. Um trecho dele dizia:

 

“Mas se o vírus te atingir

chegando, bem sorrateiro

levando alguém que ama

duvido que fique inteiro

guarde bem na sua mente

a frase do presidente:

Lamento, não sou coveiro”

 

Para deixar o texto registrado e facilitar o compartilhamento, criei o perfil @1assunto1cordel. A partir daí, passei a produzir de forma mais organizada e periódica, sobre os mais diversos temas, mas sempre lembrando que a arte e o direito de fazê-la é e sempre será um ato político.

 

É muito instigante a forma como a paixão e a escrita pela literatura de cordel foi aparecendo na tua vida. é uma surpresa sutil e rara, essa de quando a gente descobre quando uma paixão acontece. tu falou que antes mesmo de começar a escrever, já era bastante apreciadora das tuas raízes nordestinas. me conta um pouquinho como é pra tu esse envolvimento e quais as artes que tu costuma estar mais próxima?

 

Eu nasci no sertão de Alagoas. Cresci dançando quadrilha e coco de roda, comendo macaxeira, cuscuz com queijo coalho e chupando seriguela direto do pé na casa das amigas. Não poderia ter tido uma infância melhor. Dia de domingo, era comum acordar ao som de Luiz Gonzaga, Dominguinhos e Flávio José, enquanto minha mãe arrumava a casa. Estudei teclado dos 9 aos 14 anos, e sonhava com o dia em que eu aprenderia a tocar sanfona (sonho esse nunca realizado, ainda). A música como um todo é uma das minhas artes preferidas, mas são os sons do Nordeste que me tocam ainda mais. Alceu Valença, Maria Bethânia, Djavan, Lenine, Geraldo Azevedo, Alcione, Belchior. A gente é muito bem servido de arte, não é? Inclusive, as letras de músicas também me inspiram a escrever. Gosto de ouvir as combinações de palavras, as rimas de referências, ou até fazer menções mais explícitas à composições, como no verso a seguir, publicado no meu perfil no aniversário de 76 anos de Bethânia:

 

“Escutando sua voz

todo mundo fica bem

e seu canto, flutuando

qualquer coração retém

abraçando como amparo

de Xerém a Santo Amaro

de Santo Amaro a Xerém”

 

Como é bonita a forma como tuas memórias e as lembranças de tantas músicas te chegam também na escrita. as referências ao que a gente vive, vê, escuta e ama sempre encontram seus jeitos de dar notícias. tem algum local ou forma que tu encontra de fazer registros dessas memórias, de coisas ainda não-escritas, dos teus rascunhos? quais os formatos que tem os teus textos antes de escritos?

 

O que a gente vive e ama, nos faz ser quem somos. Por isso é tão importante viver bem e intenso, sem deixar de olhar ao redor, para a nossa própria construção. E aí trago uma citação que amo: “corra, não pare, não pense demais. Repare essas velas no cais, que a vida é cigana”. Quanto aos meus textos, eles vêm, na maioria das vezes, de ideias espontâneas, do que observo, do que escuto, do que converso. De forma objetiva, estou sempre anotando algo no bloco de notas do celular. Subjetivamente, o meu não-escrito tento deixar em todas as pessoas que tenho alguma troca.

 

Também me toca de jeito muito singular como a escrita pode ser (e é) atravessada pelas coisas, pelas pessoas e pelos movimentos que nos rodeiam. de mãos com esses fragmentos, como costuma se dar o teu processo de escrita e de costura de um texto, de um poema, de um cordel? tu tem alguma preferência em escrever à mão ou digitado?

 

Eu gosto muito de escrever à mão, mas minha rotina envolve estar sempre no computador ou celular, então, praticamente todos os meus textos são escritos diretamente neles. Quando bate a inspiração (ou quando tenho um prazo a cumprir), opto pelo silêncio entre mim e a tela, e deixo as palavras fluírem.

 

Não deixei de notar a forma como a música te aparece também de um jeito muito singular, que é na tua atenção com as combinações, as palavras, as rimas. ainda que o cordel não seja cantado, parece haver algo de muito sutil na sonoridade. como é pra tu o processo de escrever com as rimas e as métricas do cordel?

 

Certamente existe uma sutileza na sonoridade do cordel, que só quem conhece o estilo sabe ler com o encaixe perfeito pra rima. Me adaptei a produzir em sete linhas, e a prática me trouxe uma facilidade maior para seguir nessa estrutura. Gosto como a quarta e a quinta linha rimam sozinhas entre si, e vem a sétima e resgata o som das linhas anteriores, segunda e quarta, e que determinam a rima principal do trecho do poema. Quando escrevo, imagino como será para o leitor receber aquilo, pois sinto que o cordel gera uma expectativa para se descobrir como o autor irá rimar, como fechará cada verso, vezes de forma engraçada, vezes de forma crítica, mas sempre tentando gerar algum impacto. E também tento não abusar da licença poética para alterar ou abreviar palavras para encaixá-las nas frases. Gosto do desafio de usá-las como realmente são.

 

Nossa, é muito interessante e aparentemente bastante complexo e inventivo esse processo de escrever em consonância com a métrica, com a rima e com o ritmo do texto no cordel. É como se tivesse uma voz própria. existe alguma terminação de palavra que tu considera ter mais facilidade ou dificuldade em utilizá-las? Como tu vai construindo teus exercícios de familiaridade com as palavras escolhidas?

 

Acho que, com a prática, o processo fica bem menos complexo. É como se a quantidade certa de sílabas já se construísse de uma forma mais automática na hora da criação de cada frase do verso. Na poesia, entre os tipos de rimas, existem dois mais conhecidos: as rimas pobres e as rimas ricas. Na primeira, considerada mais fácil, a gente usa palavras da mesma classe gramatical, como verbo com verbo. Assim, as terminações de mesma conjugação sempre irão rimar: falar, cantar, dançar, chorar etc. Já as rimas ricas são as que misturam as classes, como substantivo e verbo. Exemplo: reverbera e primavera, ensina e rotina etc. Na construção da poesia, eu não costumo pensar nessas classes. Para mim, importa mais o sentido do texto e se eu fiquei satisfeita com a ideia passada.

 

Fiquei bastante curiosa e fisgada quando tu falou sobre como o fechamento do verso pode causar impacto e efeito em quem lê, seja de riso ou de crítica. Tu tem alguma história pra contar ou já recebeu algum retorno de pessoas que te lêem falando sobre esse efeito gerado pela tua poesia e pela tua escrita? E ainda tenho outra pergunta: se tu sente, de alguma forma, esse efeito em tu no ato de criar um texto?

 

Entre os textos que produzo no meu perfil, os que costumam ter mais engajamento são os que consigo escrever assim que uma pauta quente surge. O primeiro exemplo é um humor, onde as pessoas estavam envolvidas com o início do Big Brother Brasil, começaram lendo achando que a pauta já estava determinada, e a última linha trouxe uma mudança no assunto:

 

“Ser um fã do BBB

não é nenhum despreparo

mas também, se não gostar

eu não ligo e nem comparo

vamos combinar assim:

só quero longe de mim

se votar no bozonaro”

 

Como, sem nenhuma dúvida, sei que os seguidores do meu perfil tem um posicionamento político muito próximo do meu, muita gente repercutiu dizendo que se sentiu representada. Já um outro exemplo de impacto desses textos, é quando falo sobre temas mais difíceis, como quando atingimos a infeliz marca de 400 mil mortos pela COVID.

 

“Enquanto vidas se perdem

o discurso segue hostil

de quem lidera a nação

de dentro de um covil

e o Palácio da Alvorada

tem a fachada pintada

com o sangue do Brasil”

O impacto do que produzo sempre começa em mim mesma. Escrever sobre esse tipo de pauta me toca profundamente, não só por mim, mas por saber que abordo um assunto sensível para tantas pessoas. Então, penso que, por menor que seja o público que você atinja, é preciso ter responsabilidade e delicadeza com as palavras.

Fico muito feliz que tu ainda guarda e compartilhou aqui o primeiro verso que tu escreveu. é sempre bastante simbólico guardar essas memórias. é quase também como um gesto de manter viva dessa tua primeira experiência com a escrita literária. obrigada por dividir! Desde os tempos que tu começou a escrever até hoje, como tu sente tua relação com a literatura?

A literatura é apaixonante e necessária, mas você precisa dar espaço para ela. Eu, por muitas vezes, acabei deixando-a de lado devido a todos os atropelamentos da vida adulta. Em 2018, quando começou a estourar um período de desinformação no Brasil, pra mim foi gritante a mensagem de que eu precisava ler mais. Eu precisava me fundamentar, retomar conceitos, entender melhor o porquê da classe artística ser tão perseguida, além de ler gêneros exclusivamente por prazer, pois isso também importa. Decidi então iniciar uma meta de ler dois livros por mês. Isso fez total diferença em minha formação de opinião, minha visão de sociedade, e meu repertório como um todo. Além do que ler mais, sem dúvida, me fez escrever melhor.

A literatura também me aparece como uma necessidade, que quase antecede o ato da escrita. Acho que escrever é um exercício que às vezes acontece quando não se está escrevendo. Me conta um pouquinho dos livros que mais tem te marcado?

Quem, com envolvimento político, não ouviu falar com frequência em Paulo Freire nos últimos quatro anos? Ler Pedagogia do Oprimido foi uma das minhas melhores escolhas nesse período. É muito evidente o motivo de sua base ideológica incomodar tanto quem está no poder, pois se uma educação libertadora é um ato de revolução, o seu desmonte é um projeto de (des)governo. Atualmente, estou lendo Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie. Entre tantas questões de gênero e raça que traz a história, queria destacar aqui as questões de identidade da protagonista e personagens nigerianos que almejam viver o “sonho americano”, e fazer uma analogia com tantos nordestinos que, por diversos motivos, supervalorizam outros lugares e culturas, e não aprenderam o quão ricos, diversos e importantes nós somos. É uma leitura que eu recomendo demais.

Não conhecia este livro da Chimamanda, mas vou procurá-lo. Me interesso muito pela escrita dela e pelas discussões que ela traz. Sempre me lembro de um vídeo que assisti, me emocionei e repeti várias vezes quando ela fala do perigo das histórias únicas. E como é interessante a forma como tu relaciona a temática com livro com viver sonhos que não são nossos. Alguns desses textos tem te provocado a escrever algum poema? Se tiver e quiser compartilhar, vou adorar lê-los!

Eu ainda não vi o vídeo, mas li a versão da palestra como livro, que leva o mesmo nome “O perigo de uma história única” e também me emocionei muito com a perspectiva dela. Esse tipo de leitura sempre me inspira a discorrer sobre. Um verso a respeito disso que escrevi:

 

“Sobre seus planos e sonhos

ninguém poderá dizer

a direção mais correta

pra que possa percorrer

nenhum caminho é errado

se estiver alinhado

ao que você quer viver”

Fiquei curiosa sobre como (ou se) a voz aparece também nos teus escritos e nos teus processos de criação. Em se falando de literatura de cordel, me parece que a relação entre o ritmo, o som e o corpo de quem diz também se fazem presentes de alguma forma no poema. Me conta como é pra tu?

Declamar poesias em cordel também é uma arte. É quase uma melodia. Por vezes, é necessário uma entonação que difere da leitura tradicional das sílabas tônicas e da junção das palavras na frase. Isso chamamos de sílabas poéticas. E, claro, só com um bom sotaque nordestino que, pra mim, essa leitura fique perfeita. Tenho poucos vídeos onde apareço declamando, exclusivamente por precisar de uma produção maior. A escrita, pra mim, se torna mais rápida e prática. Consigo produzir com mais agilidade, facilitando, inclusive, a disseminação nas redes sociais.

É bastante significativo e necessário o posicionamento de que a arte é um ato político. é e sempre será mesmo. as escolhas das palavras, das imagens, dos lugares, das vozes: nada disso é sem efeito e não acho que seja possível uma arte ou expressão artística que seja neutra, imparcial. o impacto que tu traz com teus versos escritos durante a pandemia, por exemplo, também é uma das formas possíveis de fazer da escrita essa provocação necessária, esse grito, esse ato. como foi pra tu a escrita desses textos, diante do cenário de angústia provocado pela pandemia?

Acho que o alívio que os textos me traziam eram muito pequenos diante da devastação que o mundo passava. Mas publicá-los se tornou uma onda de pequenos alívios. Recebi muitas mensagens de pessoas que diziam que “precisavam ler aquilo”, ou até que eu consegui “traduzir algo que estava sentindo”. Isso só foi possível pela utilização de algo simples e necessário na arte: a liberdade de expressão. Liberdade de criticar, de questionar, de expor, de ser direta, de citar nomes, de opinar baseada em minhas próprias ideologias. Liberdade de enfatizar que “Quem sabe faz a hora, / Não espera acontecer”, seja ou não, essa, uma chamada à luta. Acho que qualquer pessoa com o mínimo senso crítico, estético e social, não vive sem arte, até porque estamos imersos nela. E a arte tem um poder de transformação poderosíssimo. Não tenho dúvidas que ela me ajudou (e a tantas outras pessoas) a atravessar os piores momentos da maior crise humanitária de nossa geração.

Essa sensação de identificação que o trânsito entre leitura e escrita provoca é, por vezes, um combustível pra que se continue escrevendo. Quando tu fala dos pequenos alívios que sentiu com as publicações, talvez seja um dos jeitos de encontrar destinos pra dizer dos nossos sofrimentos. Quando compartilhados, é como se houvesse um endereçamento, algum lugar de escoar. essa pergunta sempre me aparece nas últimas entrevistas que tenho feito, e acho interessantíssima a forma como cada pessoa dá contornos diferentes a esse momento, de sentir que um texto acabou. Como é pra tu lidar com a publicação de um texto e como tu sente que está pronto para ser publicado?

Eu sou o meu primeiro público. Quando escrevo, avalio como leitora. Acho que, nesse processo, eu tenho alguns desafios: ter uma boa ideia, encaixar as rimas, e, dentro da proposta de sete linhas, saber se consegui resumir o pensamento em um texto tão pequeno. Quando esses desafios são superados, reviso mais uma vez para saber se aquela poesia não me causou indiferença, mas sim me tocou de alguma forma, qualquer uma que seja. Se a resposta for sim, é porque ela está pronta para ser publicada.

Que coisa linda, Maryana! Saber que a escrita primeiro pode tocar na gente antes de tocar outras pessoas realmente é um dos jeitos de sentir até onde vai o texto, até onde puxar aquele fio. É incrível conhecer um pouco dos teus processos e da tua relação com escrita e com a criação literária. Te agradeço muito pela tua gentileza em compartilhar comigo tua poesia, e que a gente foi construindo e tecendo juntas essa conversa.

Antes da gente ir, deixa aqui onde podemos encontrar mais do teu trabalho?

Meu perfil principal de criação de conteúdo – @1assunto1cordel

Meu perfil pessoal – @maryanadamasceno

Além de produzir literatura de cordel e deixá-las online, tenho dois livros infantis publicados pela Imprensa Oficial Graciliano Ramos, frutos de concurso literário em Alagoas. Eles estão disponíveis nos seguintes links:

https://www.imprensaoficial.al.gov.br/antigo/loja/produto/silvana-a-baleia-beluga

https://www.imprensaoficial.al.gov.br/antigo/loja/produto/o-marinheirinho-do-pontal

 

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