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O Quilombo Real do professor Edson Moreira

Texto por Bertrand Morais

Um muro e dois portões, com espessas colunas de ferro, separam o suntuoso sobrado da rua. Um olhar mais atento para dentro, é possível perceber que há uma identificação para aquele casarão que se destoa dos imóveis vizinhos, onde lê-se “Quilombo Real” esculpido na  cor prata sob uma pedra anexada na fachada da casa. Quem mora ali?

O jornalista que vos escreve fizera a si a mesma pergunta e descobriu que só não apenas mora uma grande família, como abriga histórias documentadas num vasto acervo que remontam a história da sua família e do povo negro em Alagoas, quiçá no Brasil. Felizmente, apesar de ser uma propriedade particular, o território ancestral é bem-vindo a visitantes.

A matéria de capa do mês de novembro é sobre o professor Edson Moreira, 80, fundador da casa-museu Quilombo Real e precursor do feriado da Morte do Zumbi, ou, como foi promulgado Dia da Consciência Negra, como ofício de lei enviada por ele ao governador de Alagoas para que transformassem a data em feriado estadual e, por conseguinte, ao Presidente da República, oficializando a nível nacional.

Há 50 anos residindo no atual sobrado, o professor de história afro-brasileira aposentado relembra como seu destino cruzou a do imóvel.

“Eu havia me casado e estava procurando casa para morar, quando me deparo com esta casa à venda, mesmo sabendo que ela não cabia em meu orçamento. Então, descubro que o proprietário desta era o Doutor ‘Bahia’, que trabalhara na antiga saúde pública, na Levada” e acrescenta “foi daí, que ele expressou o desejo de vender a casa a mim por saber das lutas da minha família”. Em 20 anos, a venda estava quitada e, até hoje, as principais características arquitetônicas preservadas.

Natural do bairro da Levada, região central de Maceió, foi nesse bairro que serve de entroncamento de transeuntes e motoristas dos bairros da Parte Baixa para afazeres no Comércio e Mercado da Produção, que o pequeno Edson vira Maceió se desenvolver num processo de forte presença negra e seu constante apagamento.

Moradores de bairros adjacentes, majoritariamente negros, como Ponta Grossa, Vergel do Lago e Bom Parto, passavam pela antiga residência do professor vendendo quitutes, em cortejos religiosos ou com a folia presente em blocos carnavalescos e nos numerosos grupos de folguedos e terreiros existentes na região. Esse contato, de alguma forma, já formava a identidade negra daquele garoto dos anos 40 e 50.

Todavia, foi na amizade com o artista plástico José Zumba, que viu-se mergulhado numa história de resistência e protagonismo negro no estado das Alagoas. Zumba (In memoriam) era filho de Dona Hortência, filha de santo de Tia Marcelina, vítima e símbolo importante do Quebra de Xangô de 1912. Ao lado do amigo, o professor se criou no samba, na capoeira, no forró pé-de-serra e nos terreiros de matrizes africanas, expressões essas eternizadas em centenas de quadros pintados por Mestre Zumba.

Católico. Enquanto vivera na Levada, morava numa casa, que tivera  sido antes um galpão, aos fundos da Igreja das Graças. Negro. Atualmente em seu Quilombo Real, nome inspirado em Cerca Real do Macaco – como era conhecido um dos mocambos do Quilombo dos Palmares – reside próximo à principal avenida da capital alagoana: Fernandes Lima, nome esse que, nós, até podemos não saber, mas a história não esquece seus atos de perseguição e violência ao povo negro como protagonista da Liga dos Republicanos Combatentes.

A cidade de Maceió se expandiu, e com esse processo, bairros foram surgindo na Parte Alta do município. Inconscientemente, o professor Edson acompanhou esse movimento, sem esquecer as suas raízes e costumes. Entretanto, problemas da urbanização também parece terem o acompanhado.

Após uma trajetória de ensino nas escolas, gestão de projetos por cidades como União dos Palmares e de militância como na nomeação da atual Praça Ganga Zumba, no mar de Cruz das Almas, que em linha reta leva a Angola; Professor Edson segue respeitando a ancestralidade de uma Alagoas majoritariamente negra.

Consumidor nato de arte; durante várias viagens pelo o Brasil, tivera comprado e trazido a Maceió, quantidade considerada de artefatos e peças de importante valor histórico. Não tivera dúvida e hesitação em expor, permanentemente, móveis como a namoradeira, tambores sagrados, quadros pintados, a exemplo, por seu amigo Zumba, recortes históricos e muito mais, transformando todo o térreo do seu belíssimo sobrado em museu. Para a alegria de visitantes como Ênatha Abreu, estudante de Ciências Biológicas no IFAL.

“Foi uma honra conhecer o professor Edson, que conta sobre a história da nossa cidade e nossas raízes trazendo a possibilidade de autoreconhecimento” e a jovem complementa “ele [o professor] está vivo, bem perto de nós e isso é um privilégio”.

Quem passa e conhece bem o Centro de Maceió, deve conhecer a Praça dos Palmares. Recém-revitalizada, além de novos passeios públicos, ela também ganhou uma estátua do herói nacional Zumbi dos Palmares, presente do professor Edson que enfatiza-o como aquele que salvou milhares de escravizados, indígenas, e, segundo o que já ouvira, até judeus se juntara em solo sagrado de mata fechada, evitando um genocídio maior do que ocorrera a todos esses povos.

Entretanto, como sabido em relatos históricos, os quilombos, apesar de estruturas sociais e hierarquicamente organizadas, nunca foram locais de baixarem a guarda, pois as ameaças sempre estavam às espreitas. No quilombo em área urbana do Professor Edson não é diferente.

Maceió não tem sido exceção na falta de infraestrutura urbana. Com as mudanças climáticas, nos últimos meses, temos visto chuvas mais intensas com efeitos imprevisíveis, outros já esperados – como nos severos alagamentos da Rua Miguel Palmeira, no Farol, em dias chuvosos aliado ao fator da região ter sido local de acumulo natural de água, chamado de Barreiro dos Bois, antigamente – sendo um corriqueiro retrato disso. Um bom maceioense sabe de qual rua o jornalista vos descreve aqui e o que fazer quando a chuva aperta: evitar transitar por essa localidade. Nela também está o endereço do Quilombo Real.

Considerando nosso período chuvoso que vai de maio a agosto, registrando chuvas históricas acima da média neste ano, podemos concluir que a casa-museu Quilombo Real vive um isolamento total ou parcial de aproximadamente 70 dias. Quer dizer que no inverno o direito de ir e vir dos moradores e de acesso à informação por parte dos visitantes é restringida?

Sim, e tem mais. Na mesma rua, se você andar por mais alguns metros após a propriedade do Professor Edson, você encontrará não um, mas quatro bairros e suas histórias de vida sequestradas pela ganância e imprudência da extração de sal-gema da Braskem, e pasmem, tudo isso debaixo dos pés dos moradores. Um claro exemplo da violação à vida e ao templo que chamamos de lar, hoje, em destroços.

Nesse aglutinado de opressões, sem mencionar as simbólicas, o Quilombo Real permanece assentado com a frente virada para um dos maiores complexos educacionais da América Latina, o Cepa, como que avistasse o caminho da força para resistir: a educação,                      preferencialmente, antirracista.

Mais informações: Por se tratar de propriedade privada, a casa-museu Quilombo Real deve ter agendamento prévio para visitação, prioritariamennte, de estudantes. No local, você encontrará solo e objetos sagrados, cujos necessitam de respeito às suas ancestralidades. Lembre-se também que os donos do espaço são idosos, então apenas telefoná-los para fins específicos e em horário adequado.

Contato: @edsonmoreirabr

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