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Residência: o resultado agregador da fotografia latinoamericana em solo alagoano

Texto por Bertrand Morais

O Mira Latina é um laboratório dedicado a fotografia latinoamericana desde um viés contracolonizador conduzido pela curadora alagoana, Maíra Gamarra. Além de curadora, ela é fotógrafa, editora, produtora cultural e pesquisadora de fotografia. Bacharel em comunicação social/fotografia e mestra em Estudos Latino-Americanos (UNILA/PR). Também desenvolve pesquisas, intercâmbios, mentorias e acompanhamento de projetos, além de ter sido criadora da Residência Mira Latina, a qual aconteceu no último mês de janeiro, no litoral norte de Alagoas.

O evento consistiu, basicamente, numa imersão artistica de trocas entre fotógrafos brasileiros e estrangeiros da América Latina, numa casa situada em São Miguel dos Milagres. Lá, por vinte dias, todas e todos desenvolveram atividades e discussões referentes à fotografia. Nessa relação interpessoal, estiveram dois conterrâneos além da curadora, Messias Souza e Rafaela Chafer (Preta Rafa), que já desenvolvem fotos e pesquisas localmente e, no caso de Messias, também em São Paulo.

Os outros residentes participantes foram: Carla Spinoza (BOL), Daniela Unger (MEX), Isis Medeiros (MG), Marília Oliveira (CE), Marina Feldhues (PE), Mateo H. Acosta (COL), Rafael Vilela (SP) e Talita Virgínia (SP).  Por fim, Maíra, a curadora, também atua como pesquisadora convidada no projeto Redlafoto, do Centro de Fotografia de Montevidéu (Uruguai) e é professora no MBA Cultura Visual: Fotografia & Arte Latino-Americana (UNICAP/PE).

A Revista Alagoana traz alguns relatos de Maíra e dos conterrânneos  participantes sobre essa experiência inédita em Alagoas.

Como nasceu a ideia de realizar uma residência fotográfica latinoamericana no Brasil, e mais especificamente no estado de Alagoas?

A Residência é um produto do Mira Latina Lab., projeto que existe desde 2016. Ele surge com o propósito de promover aproximações e articulações entre fotógrafas, fotógrafos e produções fotográficas latinoamericanas contemporâneas desde uma perspectiva contracolonizadora. O projeto nasce diante do incômodo quanto ao desconhecimento e a ausência de projetos que vinculem a fotografia brasileira, em especial a nordestina, a outros territórios latinoamericanos. Uma das primeiras ações estimulou a realização de intercâmbios entre artistas de Pernambuco e Bolívia. Para a primeira edição da Residência, era importante o olhar para o meu lugar de origem, inclusive por entender a importância de projetos que criem outras rotas para as artes, além daquelas que hegemonicamente priorizam os eixos sul e sudeste.

Quais esforços precisaram ser feitos para alcançar e ser atraente a participantes de outros países fazerem esse intercâmbio por um mês no estado?

De antemão vale ressaltar que pudemos aproveitar uma rede de contatos da qual o Mira Latina já dispunha; são alguns anos trabalhando nessa construção de vínculos e pontes com outros agentes e países na América Latina. Então, partir de um lugar de reconhecimento do trabalho em prol da fotografia latinoamericana ajudou muito.

Além disso, para alcançar outros países, fizemos um esforço e planejamento em termos de comunicação estratégica. Mas, posso assegurar que ser atrativo definitivamente não foi um problema, pois recebemos um número surpreendentemente alto de inscrições, o que não era esperado para uma primeira edição e por mais que a maior procura tenha sido realmente do público brasileiro, o interesse de artistas oriundos de diferentes países foi também um êxito. Mas acho importante salientar que ainda existem diversos desafios a essa integração, ainda assim, criar elos pode ser bem mais simples do que se imagina.

Sendo uma alagoana e através dos seus mais de uma década de experiência em estudos latinoamericanos, como você vê as produções alagoanas nessa perspectiva para além das fronteiras nacionais?

A fotografia alagoana parece ter crescido e amadurecido nos últimos anos; há uma nova geração de fotógrafas e fotógrafos que tem pautado novos discursos, linguagens e experimentações, considerando que por muito tempo a fotografia em Alagoas esteve mais fortemente vinculada ao fotojornalismo e fotodocumentarismo e agora vemos outras abordagens se destacarem no cenário alagoano, especialmente a partir das mulheres fotógrafas, e vejo essa mudança com grande interesse e empolgação.

Entretanto, o número de inscrições de artistas alagoanes para a Residência foi abaixo do esperado; a convocatória recebeu mais de 100 inscrições de 7 países, mas, em Alagoas, por mais que tenhamos feito um grande esforço de divulgação, no estado a procura esteve abaixo do esperado. Essa não é uma avaliação pontual, percebo o mesmo enquanto jurada de concursos, convocatórias e premiações dos quais faço parte, no Brasil e no exterior, é raro ver representantes de Alagoas, então, sinto que romper com os limites locais ainda é uma questão. E não apenas no sentido de se inserir nos circuitos e mercados, mas porque esse tipo de interlocução contribui fortemente para o aprimoramento dos trabalhos e consequentemente da produção local. 

Entre as atividades da residência, qual mais marcou e de qual forma lhe impactou?

O mais marcante, em termos de atividades, foram os encontros e momentos de trocas coletivas, onde o grupo se reunia diante de uma provocação específica e o diálogo acontecia a partir da colaboração e colocações de todas as pessoas participantes. A possibilidade de criar esses ricos momentos de intercâmbios plurais e horizontais de fala e escuta aberta, com pessoas vindas de diferentes contextos, que se aprofundavam ao longo dos dias, a partir de um espaço seguro e respeitoso, foi um dos maiores motivadores para a realização da residência e realmente atendeu às minhas expectativas, ou melhor, superou.

(Depoimentos abaixo dos participantes alagoanes a esta pergunta)

Messias – Duas atividades em especial me tocam profundamente. A primeira foi a visita em uma casa de farinha. Pensei no quanto esse contato com a produção da farinha diz muito sobre a nossa ancestralidade indígena. Tenho pesquisado sobre esta outra identidade indígena de alagoas que foi sendo esquecida ou ocultada aos poucos, embora muito presente nas práticas e em nossa culinária.

A outra atividade que muito me marcou foi a intervenção urbana. Devolver a produção artística para os espaços urbanos como uma forma de democratizar o acesso à arte e também um modo de dialogar com a população local de São Miguel. A todo momento fiquei pensando em produzir arte sobre estas pessoas e para estas pessoas, a exposição urbana como esse gesto de devolução do conhecimento adquirido localmente.

Rafa – Poder participar, viver e sentir a experiência da intervenção dos lambes na Residência do Mira, a mim foi muito forte e marcante. Ver as pessoas interagindo de diversas formas e perceber as expressões nos rostos dos adultos e crianças. Pessoas chocadas e até horrorizadas com corpos nus expostos, corpos que todos temos e que pra mim deveria ser naturais, ali expostos de forma artística e tão crua, e por outro lado, pessoas maravilhadas e encantadas, mulheres mães mostrando a suas pequenas crianças que viam tudo com naturalidade e leveza, pessoas encantadas, perguntando que movimento era aquele, pedindo indicação de redes sociais. Foi muito forte! Poder também criar e trabalhar de forma coletiva com todes os residentes nesse dia inteiro, depois de 20 dias intensos de produção e elaboração dos trabalhos de todes. Foi tão intenso e me fez perceber também a importância de andarmos juntes e de mãos dadas.

Como você resumiria o saldo dessa troca entre fotógrafos de diversas realidades e culturas reunidos sob sua coordenação?

Foi uma experiência linda, extremamente enriquecedora, desafiadora e gratificante. Foram dias intensos, de convivência com pessoas muito diferentes, vindas de diversas partes da América Latina, pensando, conversando e fazendo fotografia todos os dias. É impossível não sair de uma experiência como essa transformada, o que era desde sempre a nossa intenção, promover um encontro que proporcionasse o mergulho na fotografia, em questões urgentes de serem pensadas e problematizadas com relação à descolonização da imagem e nossa responsabilidade como produtores de imagens, mas também um espaço de criação de ideias e trabalhos, amizades, redes de contatos, intercâmbio de experiências, processos, modos de pensar e de fazer.

Realizamos um encontro potente, alcançamos os nossos objetivos, renovamos a certeza no poder e na importância de espaços horizontais de diálogo, construção e desconstrução, de trabalho coletivo e colaborativo e eu me sinto muito orgulhosa por tudo o que ele gerou. Tenho certeza de que as sementes plantadas nesta residência serão capazes de inspirar as e os artistas que participaram por muito tempo ainda, levando adiante o sonho de transformação que acreditamos necessário no campo da fotografia e na nossa sociedade. 

Planos para uma próxima residência? Alagoanas e alagoanos devem se animar?

Tomara que sim! É um projeto lindo que tem potencial para continuar e crescer; temos todo o interesse em produzir próximas edições, mas ainda não há nenhuma definição, inclusive sobre o local de realização. É importante ressaltar que o projeto foi possível devido ao financiamento oriundo da Lei Aldir Blanc e o apoio de parceiros como a Casa das Tintas, o Fotofestival SOLAR e a Prefeitura de São Miguel dos Milagres. Repetir a dose exige o aporte de recursos que na maioria das vezes só é possível via editais públicos, por isso a importância de seguirmos exigindo do poder público o investimento nas artes e cultura.

De toda forma, Alagoanes devem sempre se animar e cada vez mais participar ativamente do cenário fotográfico local, nacional e latino-americano, são espaços que podemos e devemos ocupar, criar outras relações, expandir os horizontes, se desafiar e fazer nossas produções circularem. A fotografia alagoana merece ser conhecida além das fronteiras costumeiras.

Para conhecer o Mira Latina, saber mais sobre o que aconteceu na Residência e futuras edições  e outros projetos acompanhe: www.instagram.com/miralatinalab e www.miralatinalab.com

*Fotos cedidas pelos residentes participantes.

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