“Em Cloé, cidade grande, as pessoas que passam pelas ruas não se reconhecem. Quando se vêem, imaginam mil coisas a respeito umas das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um segundo e depois se desviam, procuram outros olhares, não se fixam.”
– Italo Calvino, As cidades invisíveis
O maior parque linear de Maceió, com quase 1,5 quilômetro de extensão, o Corredor Vera Arruda, virou palco de debate novamente na capital. A Superintendência Municipal de Transportes e Trânsito (SMTT) de Maceió iniciou uma consulta solicitando opiniões dos populares sobre a possibilidade de destituir o parque, para a abertura de ruas- Vera Arruda este que se estende da Avenida Álvaro Otacílio, na orla da Jatiúca, até a Avenida Dona Constança, em Mangabeiras. O corredor possui 15 ruas, onde apenas duas são acessíveis para veículos.
O espaço foi criado com o objetivo de democratizar o acesso à cultura e promover a produção artística local, por meio de uma programação diversificada. O local já recebeu e continua recebendo exposições de arte, shows musicais, espetáculos de teatro, oficinas e cursos. Também existe uma exposição permanente de monumentos que contam a história de diversas personalidades do país, com uma breve descrição de seus trabalhos, como é o caso da escultura da psiquiatra alagoana Nise da Silveira.
Sendo um dos mais famosos pontos turísticos da cidade, atrai tanto os moradores locais, quanto os visitantes de fora que buscam conhecer mais sobre a cultura alagoana. Na parte que é a mais visitada por turistas, não há nenhuma via cruzando o espaço, por isso toda a área é livre de trânsito.
A ação unilateral da SMTT gerou muitas discussões entre os maceioenses nas redes sociais. Alguns moradores argumentam que essa medida não teria um impacto significativo a longo prazo no trânsito e prejudicaria a utilização dos espaços públicos por pedestres e ciclistas. Já outros moradores justificam que a abertura de novas vias para veículos motorizados seria uma solução efetiva para reduzir os congestionamentos e argumentam sobre a medida dizendo “não teria tanta relevância” e continuam comentando que o órgão poderia encontrar medidas mais eficientes.
Entre aqueles que discordam da mudança, a justificativa é não priorizar os veículos às pessoas. “A cidade não pode ter uma praça que dá certo, que vocês já querem substituir por carros, buzinas. Isso não é solução, automóveis não podem ter mais espaço do que os pedestres”, postou Thais Ribeiro.
A Associação Comunitária de Moradores do Loteamento Stella Maris (ASTEMA), representada pelos membros do bairro, registrou em ata sua queixa em relação ao novo projeto. Eles afirmaram que a comunidade não foi informada adequadamente sobre o projeto e estão preocupados com as possíveis consequências das mudanças propostas. Além disso, eles destacaram que o formulário disponibilizado na consulta pública não fornece informações claras sobre as obras que possam vir a ocorrer. Outra preocupação é que Maceió não tem um plano de mobilidade atualizado.
Para Fernanda Carrera Schroeder, cirurgiã dentista e membro da ASTEMA, a consulta pública é tendenciosa. Argumentando sobre a ação, Carrera solta uma indagação que chama atenção: “ Pergunta em qual bairro o participante mora. Logo após, sobre como ele avalia o trânsito na região.” e estarrecida responde: “Ora, todos nós concordamos que o trânsito está ruim. Por fim, pergunta se deveriam abrir 2, 4, 8, todas ou nenhuma via da Vera Arruda.”
Ainda sobre o questionário, Fernanda mostra que o ponto de vista da averiguação popular não mostra sabedoria do órgão maior do trânsito de Alagoas e não atende às necessidades dos moradores, em suas palavras: “a abertura de vias não resolve o problema de trânsito e retira da população um espaço de cultura, lazer, convivência, prática de atividades físicas”
À reportagem, a dentista, que também é uma das organizadoras da Caminhada Viva Vera Arruda, contou que a manifestação surgiu pela indignação por mais esta tentativa da Prefeitura em abolir o Vera Arruda.
É pensando nele e nessa próxima geração que nós estamos mobilizados. Afinal, cinco minutos a menos de trânsito (por pouco tempo) vale mais do que isso? – Fernanda Schroeder
Nas redes sociais, o levante popular se organizou e, através de um grupo no WhatsApp, mais de 800 pessoas decidiram se movimentar para defender a não abertura do parque. Ao fim da entrevista, Fernanda reforça o apoio que o movimento recebeu: “A ASTEMA tomou a frente e montou a Comissão Abração Vera Arruda, da qual faço parte, e que está organizando o movimento”, explicou.
Os que defendem a medida, acreditam na melhoria significativa do trânsito na região, mesmo que as obras fossem atrapalhar o trânsito por um longo período. Em um dos comentários avaliados pela reportagem, Italo Benetti diz: “Os moradores da região já tem a orla para caminhadas. Verdade seja dita, é um caos se locomover na região, motoristas de aplicativo sabem muito bem disso”.
Mobilidade Urbana
Para o engenheiro especialista em segurança viária Antônio Monteiro, um dos maiores problemas de trânsito no Brasil é que a parte de engenharia de tráfego sempre é pensada para o carro como prioridade, ao invés do pedestre. No Brasil, Juscelino Kubitschek foi o principal responsável para o “auto”centrismo das cidades.
“As ruas têm que ser abertas para dar fluidez aos carros e acham que todo mundo tem que ter seu veículo individualizado, que a solução do problema é sempre abrir ruas. Isso gera uma demanda induzida na cabeça das pessoas, de que cada um tem que ter o seu carro. Dessa forma, quanto mais abrem ruas, mais aumenta a quantidade de carros na cidade, não resolve nada, porque o trânsito volta a ficar travado”, disse.
Pela falta de transporte público de qualidade, sucateamento de coletivos públicos e a falta de transportes por trilhos, como trens e metrôs, a frota de carros em Maceió não para de crescer. De acordo com dados do Departamento Estadual de Trânsito de Alagoas (Detran), de 1990 para 2022, a frota de veículos em Maceió explodiu de 21 mil para 360 mil.
O especialista também usa paralelos bem sucedidos de outros espaços de convívio ao redor do mundo, como o Central Park, em Nova Iorque, Estados Unidos.
Antônio provoca: “Vê se alguém abre a boca em Nova Iorque para rasgar o Central Park para abrir ruas?” e responde a si mesmo: “Não, Nova Iorque fez justamente o contrário, investiu em ciclovias, investiu em melhorias de calçadas e fechou ruas para o movimento de carros, para mostrar às pessoas a capacidade e a possibilidade de se deslocar de bicicleta ou a pé”. Monteiro lembrou que, na Europa, os principais países são, antes de tudo, minúsculos (Amsterdã, por exemplo, tem 821 mil habitantes, já Maceió, tem 1 milhão) e por isso, investem em meios de transporte mais humanos e saudáveis, para a população e para o meio ambiente.
Reforçando o argumento de uma melhoria na mobilidade da cidade sorriso, o especialista diz: “Quando você vai discutir as principais [cidades] europeias você tem transporte público adequado, você tem metrô, têm onibus, espaços de convívio, vias organizadas, então é isso que precisa ser discutido em Maceió, uma cidade que praticamente é divida em parte alta e parte baixa, uma cidade plana, tem a parte de baixo toda plana, a parte de cima como Farol ou Tabuleiro toda plana também. Então não é simplesmente rasgar o Vera Arruda como solução.”
Levando em consideração o contexto citado por ele de Maceió ser feita para carros e não para pessoas, Antônio diz que, “E se fosse realmente essa solução que se apresente os projetos e estudos de simulação, então é importante conversar com a universidade, fazer estudos, análises, tudo isso ampliado, mas sempre pensando que a cidade é para pessoas e não para carros”.
Jessica Lima, doutora em transportes e gestão das infraestruturas urbanas, avalia que inicialmente pode haver uma melhora, mas que tendem a saturar e voltar aos níveis de congestionamento inicial em até 5 anos – devido ao crescimento da frotas de carros.
“É possível que num primeiro momento exista uma melhora momentânea. Mas esta melhora desaparece em decorrência de dois fenômenos bem conhecidos dos engenheiros de transportes: o aumento do tráfego gerado pelo aumento da capacidade (indução de demanda), e a piora do congestionamento causado pelo aumento do tráfego em vias projetadas para ter acesso local. Estudos mostram que mesmo obras grandes de aumento de capacidade viária, como viadutos, tendem a saturar e voltar aos níveis de congestionamento inicial em até 5 anos. Uma abertura de vias locais como a proposta corre o risco de não ter impacto positivo nem sequer no curtíssimo prazo”, explicou.
Para a professora, dentre os pontos negativos da abertura do corredor estão o aumento dos sinistros de trânsito com os frequentadores da praça, descaracterização da praça como um local de convivência, aumento do barulho, aumento da sensação de insegurança no local, aumento do trânsito em vias de acesso local, piora da qualidade do ar.
“Se perderá uma área urbana viva, corredor cultural, frequentado por pessoas de todas as idades, seres de várias espécies, com frutas para serem colhidas, aula de capoeira, aula de dança, crianças andando de patins, jovens jogando bola, idosos fazendo exercício, até cabeleireiro já eu vi. Tudo isso se perde quando você rasga a praça para permitir o trânsito. É possível inclusive perceber isso hoje. Quase ninguém passa de um lado do corredor para o outro nos locais onde ele é cortado por vias.”, justificou.
Ainda segundo a especialista, não adianta querer melhorar o trânsito mexendo na oferta (abrir vias, construir viadutos, alargar vias), isso se dissipa a longo prazo, pois induz a demanda por automóvel.
“É necessário mexer na demanda, melhorar o transporte coletivo, incentivar o transporte coletivo e o transporte ativo e criar mecanismos de desestímulo ao uso do carro concomitantemente. É esta a forma como se consegue melhorar o trânsito a longo prazo. Nenhuma cidade no mundo, nem as mais ricas, conseguiram abrir infraestrutura suficiente para abarcar todos os carros, a demanda sempre cresce mais rápido. Esse pensamento de que abrir vias melhora o trânsito já é ultrapassado desde a da década de 1970. Já estamos em 2023 e as pessoas ainda não entenderam”, finalizou.