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Silvania Maria Vieira de Oliveira, conhecida como Maria Corá, é uma das tantas personagens que deixaram suas histórias para trás, interrompidas, abandonadas, rachadas e solitárias no bairro do Pinheiro.

Texto de Bertrand Morais e Lícia Souto

A rotina de todos os dias começava logo cedo. Primeiro Maria arrumava a casa e então, às dez horas da manhã, se dirigia até o seu ateliê, anexo a seu próprio lar onde morava com a família. Máquinas, estantes e artefatos que compõem seu trabalho preenchiam o espaço.

Ali era seu local de trabalho para sustento familiar, mas acima de tudo, um lugar de terapia, porque Maria também se sentia bem desenvolvendo o que aprendera, a confecção de delicadas esculturas em cerâmica: “Admirar estas pequenas joias esculpidas do barro do chão é perceber como brota a própria vida e toda a sua beleza”, comentou a artista em uma publicação. Existia amor e infinitas possibilidades criativas naquele espaço. Porém, Maria não podia perder a noção das horas, porque ao meio dia, era o horário de buscar o filho na escola.

Depois, à tarde, recomeçava os trabalhos. Nesse segundo tempo, ela conseguia se dar o prazer de se dedicar ao serviço com mais tranquilidade, assim, estendendo as horas ou no termo popular “perdendo a noção do tempo”. Ela produzia cerca de 30 a 40 peças por mês, e a venda de suas artes complementava a renda familiar juntamente com o marido dela que é advogado. O casal morava numa casa ampla com o filho, Gabriel, de 9 anos, e um animal de estimação, a cadelinha Keka. A pet da família poderia ser considerada privilegiada por dispôs de um espaçoso jardim repleto de árvores frutíferas, onde passava o dia livre.

Então, surgem as instabilidades do solo na região do bairro Pinheiro e adjacências causadas por escavações feitas pela Braskem, danificando o imóvel da família e gerando um futuro rachado por incertezas. E, como muitas outras famílias, tiveram que desocupar a casa às pressas, e para Maria Corá, também seu local de trabalho. O novo endereço era – e continua sendo – uma residência no bairro do Centro, com dimensões que pouco se parecem com a antiga casa.

A evacuação da casa onde moravam ocorreu no começo de 2019, mas o ímpeto de retomar a vida de antes aliada a esperança de Corá por dias melhores, fez ela voltar com a família para antiga residência – que deveria ser a de sempre – em novembro daquele mesmo ano. A vontade de viver tudo como já tivera sido apenas alguns meses atrás, fez ela se juntar ao marido e decidirem por uma reforma na casa. Tiveram pouco tempo para se reconectarem com os momentos que ali viveram; um mês depois a imprensa divulgou o comunicado de evacuação dos bairros afetados e mais três meses após a notícia não houve mais jeito, tiveram que sair pela segunda vez da casa. A data era abril deste ano e a pandemia do coronavírus já estava se espalhando pelo País, e em Alagoas não era diferente. O imóvel no Centro de Maceió voltou a ser o local de fuga para a família dela de uma tragédia sem precedentes.

A realidade de Maria Corá, o marido, filho e a cadela da família são completamente diferentes hoje. O estilo do atual bairro é pouco comum: muito movimento pelo dia e esvaziamento de pessoas e insegurança pela noite. A nova casa tem o espaço reduzido pela metade da que viveram no bairro Pinheiro. Com isso, os cômodos são pequenos, o amplo jardim que Keka tanto aproveitara já não existe mais e onde antes havia um ateliê, na nova morada mais se parece um depósito, apesar das inúmeras tentativas de Maria para organizar tudo em pouco espaço.

O filho, Gabriel, tenta se adaptar. Para que ele continuasse pedalando, o pai montou uma estrutura de ferro que consegue suspender a bicicleta, assim, a criança consegue pedalar, mas não consegue sair do lugar. “Ele tinha espaço para brincar de bicicleta, de skate. A gente montava a piscina quando queria, meu neto e meu filho e outras crianças brincavam o tempo todo. Meu marido fez uma casa na árvore para eles, e eles subiam nas árvores, brincavam. Hoje ele fica o tempo todo jogando videogame ou na bicicleta confinado, naquele cantinho, tendo que andar de bicicleta daquele jeito.”, conta Maria.

Entretanto, esse não é apenas o único problema da família de Maria Corá. A segunda saída da antiga casa por ter coincidido com a pandemia e a crise econômica, fez diminuir o fluxo de produção e venda da artesã. O que antes era um ateliê frequentado por apreciadores e até turistas estrangeiros, tornou-se um local vazio e resumido a família que teve de ficar em quarentena. Mas Maria também é força e tem tentado se adaptar para conseguir retomar plenamente as atividades muito em breve. Ela revela que tenta afastar os pensamentos negativos gerados por todas as mudanças abruptas que passou, porque o excesso desses pensamentos acaba bloqueando a criatividade, que é o combustível do seu trabalho.

Maria Corá, mesmo com sua casa e vida rachada, além do local de trabalho improvisado, continua tentando superar as adversidades e permanecer como uma das grandes figuras artísticas do cenário alagoano.

Sobre o projeto ‘A gente foi feliz aqui’

“Qual o preço de 40 mil vidas?”. Esse é o questionamento que o projeto visual “A gente foi feliz aqui”, do fotografo alagoano Paulo Accioly, traz para a realidade. O fotografo conta que a ideia do projeto surgiu enquanto ele ainda estava estudando na França, porém os pais dele moravam no bairro do Pinheiro e souberam que precisariam se mudar. Desse momento, surgiu a vontade de usar o conhecimento de fotografia que ele tem, de alguma maneira que pudesse espalhar as histórias dessas pessoas para além do Pinheiro.

Ele conta que apesar de não ter morado tanto tempo no Pinheiro, como outras pessoas que ele conheceu que passaram 40, 50 anos de sua vida lá, ele também foi feliz ali, ele também celebrou aniversários, encontrou amigos, também teve uma parte de sua história contada ali.

Antes de fazer as colagens nas paredes, existe todo um processo. O fotografo conta que conversa com as famílias e, ao escutar a história, escolhe um recorte, um momento marcante e simbólico daquele relato, então recolhe a fotografia e depois transforma aquela imagem em uma grande colagem aplicada rente as paredes da casa da família, no local exato onde aquele momento aconteceu. Assim, a memória em forma de colagem permanecerá na casa até o dia em que a estrutura for demolida.

Para o artista, encontrar essas pessoas e conhecer a história delas é uma experiência muito forte, é muito impactante ver quantas coisas elas têm para contar. “É muito triste. As pessoas têm muitas memórias, tristezas, raiva, tem muitos sentimentos ali dentro que elas nunca conseguiram colocar para fora. Mas é bem bonito também, reviver essas memórias.”

A utilização do preto e branco busca trazer de volta essas memórias que, na verdade, não deveriam ser memórias porque aquelas pessoas nunca deveriam ter deixado suas casas e vidas para trás: “o Projeto é um repovoamento de um bairro que nunca deveria ter sido esvaziado”, comenta Accioly.

*as imagens utilizadas aqui pertencem a Maria Corá e Paulo Accioly, respectivamente.

 

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