Arte do fogo de esculpir mulheres: as cerâmicas e memórias de Maria Corá

No Dia do Ceramista, a artista alagoana reflete sobre sua trajetória marcada por deslocamentos, pela força ancestral das mulheres e pela criação de esculturas que são pura poesia em argila

 

Texto de Esmeralda Donato com supervisão de Bertrand Morais

No dia 28 de maio, é celebrado o Dia do Ceramista — uma data que homenageia os profissionais que, com as próprias mãos, transformam o barro em arte. A cerâmica, com sua ancestralidade e resistência, é uma das formas mais simbólicas de expressar a relação entre o humano, a terra e a cultura. Do utilitário ao escultórico, cada peça carrega marcas únicas do fazer manual, tempo de queima e intuição criativa. Em tempos de industrialização e produção em massa, manter viva essa arte é também um ato de preservação da memória e das práticas artesanais.

Entre essas mãos que fazem da argila linguagem está Maria Corá, artista com 24 anos de trajetória moldando o barro em figuras femininas chamadas de “Marias”. Nascida em União dos Palmares, hoje vive em Maceió, onde continua a dar forma à memória, à terra e às emoções. Ex-moradora do bairro do Pinheiro, Corá teve sua vida atravessada pelo crime da Braskem — precisou deixar sua casa e o ateliê onde criava suas peças, realocando-se no bairro do São Jorge. Mesmo diante da ruptura, seu trabalho seguiu: as Marias continuaram nascendo do barro, queimadas pelo fogo e marcadas por uma feminilidade única que ecoa em cada escultura.

Em entrevista à Revista Alagoana, Corá compartilha detalhes de sua trajetória, os impactos do deslocamento forçado em sua produção artística e os novos caminhos que sua arte vem trilhando, reafirmando o barro como matéria de resistência, poesia e amor. Confira:

R.A.: Como surgiu o nome Corá e de que forma ele representa a força de um bom nome artístico?

Corá: Meu nome é Silvana Maria Vieira de Oliveira. Comecei a usar o nome Corá há 24 anos, quando finalizei minhas primeiras peças para comercialização. Minha mentora na época comentou que meu nome de batismo não era comercial. Quando disse que era Silvana Maria Vieira, ela voltou no dia seguinte me chamando de Maria Corá. Logo, Corá, segundo ela, é uma palavra indígena. Não sei exatamente de qual língua, porque existem muitas línguas indígenas, mas ela me explicou que “corá” remete ao sol, como no ditado antigo em que se diz “quarar” roupa ao sol. Corá seria algo que está no sol, que tem luz, que é iluminado. Desde então, assino como Maria Corá.

R.A.: Como o barro cruzou o seu caminho e como começou sua trajetória na cerâmica? União dos Palmares teve alguma influência nesse processo?

Corá: Eu saí de União dos Palmares aos seis anos. Minha vida foi praticamente toda em Maceió, onde também me formei. União tem um valor simbólico para mim por ser minha terra natal, mas minha trajetória como ceramista começou aqui. Se eu tivesse permanecido lá, talvez tivesse sido mais fácil, já que União tem fontes de argila, e queima de peças não seria um problema. Quando comecei, há 24 anos, não havia essa facilidade de acesso e informação. Tive uma professora e frequentei um ateliê por cerca de seis meses a um ano, mas depois disso fui trilhando meu caminho sozinha. Considero-me uma artista autodidata, pois desenvolvi minha própria poética ao longo dos anos.

R.A.: Por que você escolheu a figura feminina como marca do seu trabalho?

Corá: Desde o início, minhas peças retratam mulheres. Sempre estive cercada por mulheres fortes, especialmente minha mãe. Essa poética da rotina feminina é algo natural para mim. Nunca tive vontade de trabalhar outros temas. Agora, estou começando a produzir utilitários, como xícaras e pratos, para ampliar meu leque de produtos, mas a essência continua sendo a valorização da figura feminina.

R.A.: Como o crime ambiental da Braskem impactou sua vida pessoal e sua atuação como ceramista?

Corá: O desastre da Braskem me afetou profundamente como artista. Um ateliê de cerâmica exige espaço, ferramentas e matéria-prima. Tive que mudar de casa várias vezes e, durante esse período, os espaços não comportavam meu trabalho. Além disso, veio a pandemia, o que tornou tudo ainda mais difícil. Fiquei praticamente três anos sem produzir. Se não fosse meu companheiro, teria passado necessidade, porque não havia como trabalhar.

R.A.: Você participará de um evento nacional como palestrante. Essa é sua primeira experiência nesse tipo de evento? Quais suas expectativas?

Corá: Sim, será minha primeira vez como palestrante em um evento nacional. Fui convidada para o Congresso CONTAF — Congresso das Artes do Fogo — um dos mais importantes do Brasil. Vou compartilhar minha trajetória, como construí minha identidade artística e também as técnicas que aprendi, muitas delas nesse mesmo congresso. É uma forma de retribuição ao que aprendi. Esse convite representa um reconhecimento que sinto faltar aqui no meu estado.

R.A.: Quais são as suas inquietações e os novos desafios nesta nova fase da sua vida e carreira?

Corá: Sou uma artista inquieta. Não gosto da estagnação. Recentemente, adquiri um forno com alta tecnologia, que ampliou minhas possibilidades criativas. Já estou desenvolvendo novas coleções e entrando no universo dos utilitários. Acredito que o artista não pode se acomodar. Gosto de estar em constante aprendizado e de surpreender meu público com novidades.

R.A.: Se pudesse conversar com a Corá de 24 anos atrás, o que diria a ela?

Corá: Profissionalmente, não mudaria muita coisa. Talvez apenas reforçasse a importância de ter uma equipe. A maioria dos artistas acha que consegue fazer tudo sozinha, mas não é bem assim. Sou uma boa artesã, mas não sou tão boa em mostrar meu trabalho. Ter alguém cuidando da comunicação e das redes sociais teria feito diferença. Também teria buscado um ateliê melhor no início, com mais estrutura e conforto. Hoje, tenho quatro fornos, mas sei como foi difícil conquistar isso no começo.

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