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Texto de Lícia Souto

Em março, mais precisamente dia 27, o mundo celebra o Teatro. O palco, os risos, os aplausos, as lágrimas, Deus e o Diabo. As cortinas fecham, mas o show tem que continuar.

Conversamos com os atores e diretores Jadir Pereira e Aldine de Souza, que já dividiram o mesmo palco e hoje compartilham as vivências desse universo. Falamos sobre espetáculos, pessoas, histórias e pandemia; confira aqui a primeira parte da reportagem ‘Compartilhando a cena’.

“Ao interpretar um personagem, levo em consideração as palavras de Guimarães Rosa: “O real não está no início nem no fim, ele se mostra para a gente é no meio da travessia”. Sou um ator e diretor de processo. Começo pelos detalhes, o Diabo mora nos detalhes! Eu entendo, porque já fiz o Diabo muitas vezes (risos). Começo pela ação mínima de dobrar a barra da calça, para atravessar o rio. Quando eu atravesso o processo, digo, o rio, o personagem chega à terceira margem. O segredo de fazer um bom personagem é que ele nunca está acabado. O personagem nasce dentro da gente, como num casulo, quando ele sai, já sai cigarra, mariposa ou maribondo!”.

Quando perguntado sobre como funciona o processo de imersão para interpretar um personagem, essa é a resposta que vem à mente do ator, professor e diretor de teatro, Jadir Pereira. O teatro entrou na vida de Jadir através da religião, logo cedo, ainda na adolescência, quando morava em Itapajé (Ceará). Ora aquele garoto era Deus; ora o Diabo. Ele conta que vivia a Teologia da Libertação, uma época em que a Igreja abraçava o povo. Era comum fazerem peças ou palhaçaria para animar as festas nas periferias de Fortaleza, cidade para onde se mudou para cursar o Ensino Médio e, posteriormente, ingressou no Curso de Letras.

Na universidade, a relação com a dramaturgia continuou amadurecendo, ele conheceu os que considera deuses do teatro grego-romano, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, que configuraram o tripé da sua formação teatral. No entanto, foi só depois dos 30 anos, em Maceió, já professor do Curso de Letras da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), que buscou profissionalizar-se como ator e diretor de teatro, através do Curso de Artes Dramática da Escola Técnica da Ufal. Logo depois veio a fundação da Cia Teatro da Poesia, através das mãos de Jadir e da atriz Louryne Simões; hoje a Cia completa seu sexto ano.

“A Cia Teatro da Poesia de forma oracular, em dezembro de 2019, já havia decidido fazer um ano sabático, 2020 seria um período em que cada componente ficaria à vontade para cuidar de projetos pessoais. Somos uma companhia que aposta na troca de experiência com outros grupos. No entanto, veio o indesejado, ficamos em casa reféns de um vírus e de péssimas políticas de saúde pública! Então, seguimos a “vibe” do espaço virtual. Dizem que se acaba a arte, acaba a humanidade. A arte foi para a era digital, por questões de sobrevivência.”, afirma o ator.

A Cia, por sua vez, também se aliou ao digital e representou Alagoas, em 2020, quando participou da primeira edição da mostra Cenas do Nordeste, com a peça gravada “Os que vêm de Longe”. Ele conta que durante a pandemia (que ainda não acabou), cada integrante foi buscando alternativas. Jadir, que também tem grande afinidade com fotografia, apresentou uma exposição virtual sobre olhares da Feirinha do Tabuleiro e da Festa de Meado de Agosto, no Quilombo Lunga. John Fortunato produziu o projeto audiovisual “Cometa”; Louryne Simões produziu o vídeo-dança “Partenogênese”, a partir de uma oficina dirigida pela atriz e pesquisadora Naomi Silman, do Teatro Lume; Jamerson Soares fotografou cenas do bairro do Pinheiro e seguiu escrevendo textos poéticos e jornalísticos. “Como se pode observar, é característico do Teatro da Poesia que os membros dialoguem com outras artes, são bagagens que trazemos para o palco.”, comenta.

Quando perguntado sobre qual significado o teatro tem em sua vida, Jadir compartilha uma história: “O teatro já foi bem definido pelos gregos: “um lugar para se ver”! Eu cumpro este ritual milenar. Vou ao teatro para ver! O teatro hoje é minha religião. Todos os profissionais das artes cênicas são meus irmãos e minhas irmãs. É uma família grande. Se permite, gostaria de contar uma vivência: Estava eu apresentando “As Histórias do Sol Nascente, contação com teatro de objeto, paras alunos da Escola Estadual Tavares Bastos. Contávamos com o auxílio de uma intérprete de Libras. Ao final da apresentação, uma aluna surda conversava com a mãe por videochamada. A menina chorava. Curioso, perguntei a intérprete o que se passava. A menina dizia: “mãe, hoje eu vi uma peça de teatro, e eu entendi tudo!” Enfim, o teatro é o espaço para enxergar o outro. Lugar de empatia e compaixão!”.

Ainda conversando sobre os trabalhos que ficaram marcados na memória, o ator admite ser difícil falar a respeito de um especificamente, pois sente-se costurado a todos eles. Lembra-se, por exemplo, de quando interpretou Gepeto, da peça infantil “Pinóquio” (2015), recorda as vozes das crianças quando a cortina do palco abriu, revelando a casa de Gepeto.

“Talvez eu ainda não tenha acordado deste “sonho de uma noite de verão”. Eu continuo Gepeto. Continuo talhando personagens. Todos os dias, peço à Fada Azul que eu não perca o menino de verdade que habita a minha alma de artista… E não posso deixar de falar do espetáculo de estreia do Teatro da Poesia, “A Memória da Flor” (2016). Louryne

Simões fez a Flora, eu fiz o Tom. Sempre achei o personagem muito maior do que eu. A verdade é que nunca dei conta do personagem. E isto para mim é uma virtude: a criação ser maior que o criador.”, define.

Quando Jadir reflete sobre a realidade das artes cênicas no contexto do Brasil, sente-se transportado para o conto de “Pinóquio”, porque parece que fomos engolidos por uma baleia. Para ele, o cenário das artes cênicas no Brasil é distópico: “Vivemos um blecaute da Secretaria Especial da Cultura! O teatro apagou as luzes do palco! O artista tem fome! Vivemos o inverno da fábula de Esopo, “A cigarra e a formiga”. Existe uma narrativa funesta deste Governo Federal e seus apoiadores que cria a imagem de que artista é vagabundo! Na Pandemia da Covid-19, a humanidade pôde presenciar a força de trabalho dos profissionais das artes, nas lives, no streaming, nas redes sociais ou na janela do vizinho artista. Isto confirma a máxima do poeta Ferreira Gullar:  “A arte existe porque a vida não basta”. No entanto, a recíproca é verdadeira, o artista precisa de vida; e vida com dignidade! Além da saúde física, percebo que a saúde mental tem afetado muito os meus irmãos e irmãs das artes. A Lei Aldir Blanc de apoio à cultura, do Projeto de Lei n° 1075, de 2020, iniciativa da Deputada Federal Benedita da Silva, ajudou muito o setor da economia criativa. No entanto, é notório que este incentivo, muitas vezes, não chegou ao artista popular ou à base da cadeia produtiva. Aqui em Alagoas, vejo com tristeza que alguns empresários de grande porte da indústria do entretenimento ganharam, em edital da Secult e FMAC, as maiores fatias do auxílio que deveria ser emergencial. Em outras palavras, mais uma vez os ricos ganharam mais na distribuição de renda, enquanto as pobres cigarras cantam até rebentar o corpo. Como diria uma canção do próprio Aldir Blanc e João Bosco, “Tá lá o corpo estendido no chão…”, finaliza.

Fotos do espetáculo: Karla Lima; Fernanda Tenório; Alexandra Souza.

Confira a segunda parte da reportagem, com a atriz Aldine de Souza.

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