Coluna de Emmerson Duarte
A inalcançável busca pela eternidade é um dos assuntos mais antigos a fascinar a humanidade. Tal tema foi objeto de inspiração para alguns artistas, como pode ser visto nos dezessete primeiros sonetos shakespearianos, os “sonetos da procriação”, onde o poeta exorta ao seu interlocutor a se casar e ter filhos, de modo que através da sua descendência ele evite o desaparecimento da sua própria imagem e semelhança.
Havia ainda aqueles que enxergavam tal busca não como mote para obras artísticas, mas que consideravam a esperança de alcançar a imortalidade como um fim em si mesmo a ser atingido através da arte. Ou seja, a permanência de tais produções seriam marcos da realização humana, e as obras serviriam de testemunho que atravessaria a história. Contudo, tal testemunho adquire um caráter dúbio quando contemplamos trabalhos artísticos advindos da antiguidade. Isso ocorre pois, por um lado, elas atestam a duração de uma criação de milhares de anos atrás, mas ao mesmo tempo evidencia o caráter frágil e perecível dessa permanência, uma vez que essas obras chegam até nós principalmente através de ruínas e fragmentos, e raramente na integridade.
Podemos atestar isso com o registro literário mais antigo que a humanidade conhece: a Epopeia de Gilgamesh. Esse poema sumério antecede os textos da Torá, os relatos bíblicos, além de Homero e qualquer outra criação poética ocidental. Porém apesar de se ter uma noção total do texto, há diversos versos do poema são compostos de fragmentos. Já na poesia ocidental temos o caso de Safo. Dentre aquilo que a poetisa de Lesbos criou, chegou até nós apenas um único poema na íntegra, e do restante de seus versos restam poesias fragmentadas, estrofes isoladas e quebradas, ou papiros tão deteriorados a ponto de só restarem palavras soltas. Mas mesmo nessas condições, o que sobreviveu é valioso o suficiente para ela ser tida como o maior expoente da lírica grega.
Não é apenas na poesia que fica registrado o caráter de uma permanência fragmentada das criações estéticas dos tempos antigos. Tal aspecto é também evidenciado nas esculturas. Mesmo quando essas obras apresentam partes faltando ou apenas ruínas, há uma captura mais imediata do nosso olhar nesses trabalhos, que por serem esculpidos em pedra, tendemos a acreditar que teriam maior durabilidade do que as criações advindas da linguagem e registradas em frágil argila ou papiro. Inclusive, tais faltas chamam tanta atenção que, às vezes, se tornam uma das características mais marcantes dessas esculturas. Afinal, como não se lembrar da falta de braços da Vênus de Milo ou a ausência da cabeça da Vitória da Samotrácia?
Mas nessas esculturas, assim como nos versos perdidos de Safo ou nos trechos fragmentados da epopeia suméria, incompletude está longe de ser sinônimo de defeito. Podemos até lamentar a ausência do todo, mas não negar o caráter de obra-prima para essas peças, ou muito menos supor que elas precisam ser “completadas”, modificando o achado original. Afinal, pode-se sonhar qual seria o olhar ou expressão na fronte da Vitória da Samotrácia, mas não ousaríamos macular o original reformando-a ou acrescentando as supostas partes faltantes.
Nesse sentido, qualquer tentativa de “reforma” ou “reparação” seria visto como deturpação, e não conserto. Pode parecer um paradoxo, mas nesses casos, a tentativa de completar a obra seria uma mutilação. Nessas obras, a falta não seria um defeito ou imperfeição, mas sim um de seus componentes estéticos. Isso abre espaço para uma reflexão.
A atual conjuntura social nos impõe um determinado modo de vida, onde somos postos em constante competição com os outros, e dessa forma, obriga-nos a incessantemente perseguir uma ilusória ideia de perfeição física e mental que, paradoxalmente, causa adoecimento. Diante dessa demanda de uma eterna busca de excelência, a arte nos permite pensar que uma suposta “completude” não é uma condição imprescindível para uma obra-prima.
Galeano dizia que a utopia está no horizonte e que se caminha até lá mesmo sabendo que não pode ser alcançada, mas ela existe justamente para que se continue a andar. Da mesma forma, somos seres faltantes e incompletos, sempre em constante busca de algo. A questão é não enxergar essa incompletude como um motivador para uma busca de uma exigência ilusória de perfeição. Mas, uma vez que aceitamos que há uma inevitável incompletude inerente a todo ser, podemos tomar essa falta como algo importante para nos impulsionar a continuar caminhando.