Texto de Lícia Souto
Envolvente do primeiro ao último segundo, o curta “Infantaria” nos coloca diante de duras questões de gênero exprimidas por jovens personagens fantásticas e cores vivas que, em sua narrativa, constroem uma atmosfera particular entre a infância lúdica e a turbulenta adolescência.
Conforme assistimos ao filme, algumas cenas sensibilizam nosso olhar, como a entrada da personagem Verbena (Karolayne Raíssa) no drama, quando ela vem nadando pelo rio ao mesmo tempo que, do ponto de vista da pequena Joana (Ana Luiza), é quase mística a chegada da garota que simboliza essa adolescência que ela tanto busca.
Em uma ficção preenchida por mulheres, Eduardo, irmão de Joana, desempenha ao longo do curta a figura de carrasco, constantemente importunando e vigiando a irmã, como um soldado que reporta a um superior ausente.
A obra dirigida por Laís Santos Araújo nos magnetiza com sua narrativa, seus detalhes e com o desdobramento das atuações tão jovens. A atriz Karolayne Raíssa sustenta com maestria um olhar triste e precocemente amadurecido de sua personagem, enquanto descobrimos as camadas desenvolvidas por Ana Luiza quando a adolescência que Joana tanto fantasiou começa a se transformar numa espinhosa realidade, a partir da cena de seu primeiro beijo.
Merecidamente, “Infantaria” mirou voos altos e foi ainda mais longe, se tornando o primeiro filme alagoano a concorrer e ser premiado no Festival Internacional de Cinema de Berlim.
A mulher por trás dessa obra topou nos encontrar em um café em Maceió para conversar um pouco sobre cinema.
Laís Santos Araújo é uma maceioense de 29 anos, jornalista e diretora de cinema. Uma mulher de estatura mediana, cabelos volumosos cacheados e um sorriso tímido que acompanha os olhos pequenos.
Nossa conversa acontece em um café também preenchido por cores vibrantes, com uma música ambiente calma que se mistura aos sons inquietos de uma avenida na Pajuçara.
Começamos a entrevista pelos desafios que a diretora, que também escreveu e editou “Infantaria”, enfrentou para tirar o projeto do papel com um orçamento muito baixo. Laís conta que a produção foi contemplada através da Lei Aldir Blanc com um edital de 40 mil reais, que foi absolutamente significativo para realizar o curta, mas sem dúvidas um orçamento irreal para qualquer filme.
“Então o nosso maior desafio foi encaixar o filme, a produção, dentro do que o recurso possibilitava. Foi muito trabalho de todo mundo da nossa equipe. É sempre surpreendente você começar a ver as coisas ficando prontas. Um dia a Lyara (diretora de arte) me mostrou uma projeção dos cenários, de como seriam quando estivessem prontos, eu fiquei maravilhada porque era muito o que eu esperava, então à medida que as coisas vão tomando forma, isso vai deixando você surpresa apesar dos desafios. Tive o mesmo impacto com relação às atrizes, é uma construção emocionante.”, conta Laís.
Ela afirma que já gravou outras ficções, uma delas situada em Anadia (AL), inclusive, com valores semelhantes, que à época (2019) já era um orçamento apertado, então quando se compara aos valores de todas as coisas em 2021, é notória a incompatibilidade das contas para tirar os projetos do papel. Isso, segundo a diretora, é negativo também em outros sentidos, porque acaba precarizando de certa forma o trabalho da equipe, tendo que trabalhar dentro de um limite tão estreito. “Nós alcançamos um lugar muito alto com esse filme dentro dessas circunstâncias, e eu tenho esse sentimento de que foi especialmente porque todos colocaram muito de si nessa produção, pra fazer dar certo. O Pedro Krull, produtor executivo, trabalhou de forma inimaginável pra conseguir as coisas, foi conquistando parcerias pra tentar viabilizar o filme, indo nas prefeituras, empresas privadas, pessoas. É realmente um trabalho de ir batendo nas portas e abrindo esses caminhos.”, completa.
“Enquanto profissional no cinema, eu valorizo e protejo a minha visão dentro da produção do filme, mas estou sempre muito aberta e porosa para o que vão me dizendo, mas enquanto profissional eu acredito muito em materializar o que foi sonhado. A gente trabalha de maneira muito precarizada ainda, mas tentar sempre dentro do possível ter um ambiente ok, para você poder lembrar com algum tipo de prazer e alegria. Acredito em dedicação e trabalho, que caminham juntos; fazer o que você faz e continuar fazendo até chegar em algum lugar.”, explica a diretora.
Laís também acredita que para ter um ambiente assim de trabalho, às vezes, é importante trabalhar com amigos, porque o trabalho no set é um esforço de horas e dias seguidos, um trabalho intenso e desgastante, então entrar em um ambiente em que pelo menos algumas pessoas ali são seus amigos, torna o processo melhor. “Você coloca muito do emocional também, nem sempre é possível se divertir no set porque as coisas vão acontecendo, mas eu tento trazer isso pra o ambiente, para que no fim a gente tenha aquele resultado, um filme que gostaríamos de sentar e ver.”.
Ela explica que quando fala em defender sua visão de projeto e trabalho, muitas vezes isso não é visto como uma coisa positiva quando vem de uma mulher. “Quando uma mulher tem visões muito definidas sobre alguma coisa pode soar como autoritária, inflexível, mas quando se trata de um homem as pessoas tendem a enxergar como alguém que sabe o que está fazendo. A gente sente bastante isso.”, argumenta.
E defender suas visões também é sobre ouvir e saber a hora de parar. A diretora conta que considera importante ter expectativas altas quando se olha pra um filme, mas que estava tão imersa nele, trabalhando há tantos meses, que quando finalmente viu que o curta estava pronto, não sabia dizer se estava “muito bom ou muito ruim”, diz aos risos.
“Você tem que permitir que o filme fique pronto, sabe?! Então a partir daí eu tentei as coisas mais altas que eu poderia ver na minha frente, os festivais mais difíceis, os que eu mais queria participar. E aí tivemos algumas respostas muito incríveis de curadores desses festivais maiores, porém não entramos a princípio. Mas eu pensei “se nós recebemos esses tipos de respostas, quer dizer que o filme tem uma potência”. Nós redirecionamos, começamos apostando nos festivais nacionais, lá por Curitiba, um festival que sempre quis participar, e eventualmente chegamos na Berlinale.
No dia da premiação, quando eles começaram a descrever quem iria ganhar, estávamos eu, Pedro Krull e o Petrus, que é assistente de direção; nós começamos a nos olhar no auditório, porque parecia que era o nosso e ao mesmo tempo você não quer acreditar, porque se não for… E aí quando eles anunciaram o “Infantaria” foi muito lindo, foi uma sensação de conquista. Conquista que é do filme, conquista alagoana, porque é a primeira vez que um filme daqui participa e já sai com o prêmio. Então é muito significativo você ter esse espaço, essa possibilidade de discutir lá fora as coisas que são feitas aqui, discutir Alagoas, ver essas pessoas de outras culturas interessadas no que tá sendo feito aqui, no lugar, nas pessoas, nos atores, é interessante. Ver essas pessoas do outro lado do mundo, de outras culturas, tendo essa compreensão significa que a intenção do filme foi muito bem traduzida. É mágico.”, conta Laís.
A diretora, que também é jornalista, tentou durante um período conciliar os dois trabalhos, quando passou pela Revista Continente, Diário de Pernambuco e, posteriormente, Folha de São Paulo e Revista Trip. Apesar de ter essas oportunidades em veículos que são almejados por muitos profissionais da área, chegou um ponto decisivo em que ela percebeu que não era aquilo que queria fazer. Queria, sem dúvidas, trabalhar como artista.
“Meus pais sempre foram preocupados com o que eu trilharia, mas acredito que foi algo de aceitar mesmo, os meus caminhos sempre guiavam pra isso, pra arte desde cedo, e ficar reprimindo isso, que já é reprimido na escola, por exemplo, não fazia sentido. A gente sabe que, culturalmente, a arte muitas vezes não é vista como uma qualidade a se nutrir e sim a reprimir, mas ai chega um ponto que você percebe que não é uma fase de criança ou algo assim. Hoje eles já tem uma outra visão, mas é um processo de entendimento mesmo, nem eu quando era adolescente sabia que poderia trabalhar com cinema em Alagoas, então imagine o quão distante isso era pra eles, que não tem nada a ver com arte e cultura local, ninguém da minha família tem isso. Realmente parecia algo fora da realidade, difícil de visualizar. Eventualmente, eles começaram a entender sobre, como funciona, como financia, como se tira isso do papel. E mesmo assim eu reconheço que é uma área de muita instabilidade, tem muitos altos e baixos.”, relata.
Apesar desses altos e baixos, a diretora afirma que nunca pensou em parar de produzir, mas sempre se questionou sobre o quanto seria possível fazer com as circunstâncias que possuem. Ela já chegou a pensar se deveria continuar no estado ou tentar outros lugares, mas nunca parar. Hoje, Laís não se imagina pelo menos nesse momento produzindo em outro lugar, é Alagoas que ela quer retratar e trazer para as telas do mundo.
“Alagoas acaba sendo uma parte muito importante das minhas histórias, um desejo natural de filmar aqui, porque faz parte de mim, dos cenários que eu conheço, então de forma inevitável Alagoas acaba sendo essa parte significativa porque construo muita coisa a partir da minha memória mesmo. Você ver na tela do cinema os lugares que você frequentou, que você conhece e ouvir o sotaque da gente é muito incrível. Mas é um processo muito natural, eu não faria hoje filmes fora daqui, claro que tudo pode mudar, mas é a minha intenção agora.”