Na Aldeia Karapotó Plaki-ô, em São Sebastião, no agreste alagoano, a terra tem memória. É com barro, fogo e história que o povo originário está reconstituindo uma das mais simbólicas expressões de sua identidade: a cerâmica.
Para Marcelo Karapotó, liderança reconhecida informalmente pela comunidade, o projeto de resgate da cerâmica tradicional não apenas traz de volta práticas ancestrais, mas devolve vida ao que estava adormecido.
“A cerâmica representa a vida. Onde a gente cozinha, onde a gente esfria água… Ela representa até a nossa passagem para a outra vida”, explica Marcelo.
Ele lembra que os povos Karapotó utilizavam potes de barro, que chamam de saba, como urnas funerárias.
“Ela é um meio de transporte espiritual também. A gente usava a saba para enterrar nossos mortos. Isso está na nossa essência”, completa.
Segundo Marcelo, a cerâmica estava esquecida dentro da aldeia.
“Ninguém mais fazia. As duas anciãs que ainda sabiam já estavam muito velhinhas, sem forças. E as mais novas nem sabiam como era moldar uma panela”, lamenta.
Ele reforça que o saber ancestral estava prestes a desaparecer: “A cerâmica estava morrendo, e com ela uma parte da nossa alma como povo”.
Foi nesse contexto que surgiu o projeto “A Identidade do Povo Karapotó Plaki-ô”. Para Marcelo, ele veio como resposta a uma necessidade urgente.
“Eu sou o projeto, porque eu vi com meus olhos a transformação que ele trouxe. Fez com que a nova geração entendesse, se interessasse, praticasse. Foi um renascimento”, afirma, com orgulho.
De memória pessoal à prática coletiva
Marcelo Karapotó carrega na fala as lembranças da infância moldada no barro.
“Fui criado no barro. Meu pai fazia tijolo artesanal, minha avó fazia potes, minhas tias também. Eu ajudava desde criança: a preparar o barro, a machucar ele no sol, tirar pedrinha por pedrinha… Isso era meu dia a dia”, conta, lembrando da vivência em Kariri-xocó, território onde cresceu antes da comunidade Karapotó Plaki-ô retomar a aldeia Tingui.
Para ele, a cerâmica é mais do que utilidade doméstica ou arte: é estrutura de vida e identidade.
“A gente fazia panela para cozinhar, pote para esfriar água, tijolo para fazer casa. Ela sustentava nossa economia, era nossa moeda de troca com outras comunidades: trocava-se por farinha, feijão, arroz. Era o nosso comércio”, relembra.
Marcelo reconhece que o povo Karapotó mudou com o tempo.
“Hoje temos médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, vigilantes. Nosso povo estudou, se formou”, conta com orgulho.
Mas ele acredita que modernização e tradição não devem ser excludentes.
“Mesmo que a gente não dependa mais da cerâmica para sobreviver, ela continua sendo parte da nossa identidade. E identidade a gente não pode deixar morrer”, afirma.
Para ele, o desafio agora é conscientizar os jovens a manterem viva essa herança cultural.
“Trabalhar e estudar, sim. Mas também praticar a nossa parte indígena. A cerâmica representa a vida por todos os sentidos. Não é só sobrevivência, é alma, é história, é resistência”
Com o forno tradicional aceso na aldeia e oficinas em andamento, o povo Karapotó Plaki-ô molda mais do que objetos, molda o próprio futuro. E como Marcelo resume:
“A cerâmica é o que nos conecta com os nossos antepassados. É ela que garante que nossa essência siga viva para os que ainda virão”